Politics and culture in the kingdom of D. John VI (Brazil / Portugal, 1792-1821).
Por Juliana Gesuelli Meirelles – historiadora, professora da PUC -Campinas. Titular da Cadeira 16 do IHGG Campinas.
O livro recém lançado após a Sessão do IHGG Campinas, de 22 de maio de 2018, é resultado da minha pesquisa de doutorado realizada no Departamento de História, da Universidade Estadual de Campinas, entre 2008 e 2013, sob a orientação da professora Leila Mezan Algranti. Ao longo desses anos, o tempo em que D. João VI e a corte portuguesa habitaram a possessão portuguesa com sede no Rio de Janeiro, denominado de “período joanino”, foi estudado na perspectiva da história comparada e o viés teórico do entrelaçamento entre a histórica política renovada e a história cultural. A presença da realeza por essas terras alterou significativamente a administração do Império lusitano e, principalmente, a forma de ser e de pensar da monarquia assim como de seus próprios súditos.
Nesse sentido, a obra aborda os aspectos culturais advindos a partir de tantas mudanças. O trabalho analisou a emergência e a compreensão da política cultural joanina dentro de uma cultura política específica do final do século XVIII e raiar do século XIX, elegendo quatro instituições – alvo das atenções do monarca – que tiveram efeito transformador na vida da corte, no Rio de Janeiro, tanto em termos sociais, quanto artísticos e científicos: a Imprensa Régia, a Academia Militar, o Teatro São João e a Biblioteca Real. As conexões políticas existentes entre esses quatro espaços, nesse sentido, foi mote das investigações. Poderia afirmar que tais espaços seriam uma mola de sustentação política do Império no auge da crise do Antigo Regime Português?
Nesse sentido, a investigação entre o entrecruzamento das Letras, Artes e Ciências com o complexo mundo da política portuguesa foi sendo pensado pelas duas margens do Atlântico. Ou seja, até que ponto tais instituições culturais sui generis nesse momento da História do Brasil, mantinham suas especificidades e distanciamentos com suas congêneres lusitanas. Afinal, como diz Leila Algranti no prefácio da obra, a América não era a Europa e o Brasil não era Portugal.
A governança de D. João (1792-1826) se desenrolou em um período de grandes turbulências políticas na Europa. Em meio aos acontecimentos da Revolução Francesa, com destaque para a ascensão e queda de Napoleão Bonaparte como Imperador da França (1804-1814) até o eclodir da Revolução do Porto (1820), as responsabilidades do monarca português eram cada vez maiores. Para ele, governar esteve intrinsecamente associado à salvaguarda da integridade política do Império Português, constantemente ameaçada ao longo de mais de duas décadas devido aos meandros de um intricado jogo político de dimensões interatlânticas.
Destaco aqui dois pontos que considero centrais para o sucesso da sua missão como governante de uma monarquia absolutista na Europa: a difícil diplomacia do governo joanino com as nações do Velho e do Novo Mundo, e a busca pela constituição da soberania política, especialmente através da preponderância de projetos culturais voltados para a formação intelectual de seus súditos ilustrados.
Para o alcance desses objetivos, D. João não mediu esforços. No Reino, o monarca deu continuidade à política cultural do governo mariano de fomento artístico e científico que, na prática, destinava especial atenção a quatro locus de saber voltados ao progresso da arte e da ciência: a Academia de Ciências de Lisboa, a Academia da Marinha, a Biblioteca Pública da Corte e o Teatro de São Carlos. Com o avanço das tropas napoleônicas em Lisboa, em novembro de 1807, e a mudança da sede da Coroa para o Brasil, os desígnios eram grandiosos. O projeto de implantação de um novo e poderoso Império deste lado do Atlântico era intrínseco à reestruturação do Rio de Janeiro como uma nova corte à semelhança de Lisboa. Afinal, a partir de 1808, a cidade tornava-se a residência da Dinastia de Bragança.
Com o Rio de Janeiro como sede imperial, houve numerosas e significativas mudanças que passaram a ocorrer cotidianamente nos múltiplos universos da América Portuguesa. Foram criados a Real Academia da Marinha (1808), a Real Academia Militar (1810), o Teatro S. João (1813), a Real Biblioteca (1814), o Jardim Botânico e a Escola Médico-Cirúrgica (1813), instituições régias que proporcionaram o nascimento de uma nova dimensão do saber e da circulação das ideias, mesmo que essas estivessem alicerçadas por um aparato censório de extensa monta. Dentro desse prisma, o objeto de investigação deste estudo nasceu da seguinte indagação: houve uma política cultural no período joanino? Em caso afirmativo, o que teria sido esta política cultural e como poderíamos compreendê-la. A maior dúvida recaía sobre a ação do Estado monárquico voltada para os espaços de cultura, ou seja, interrogava-me de que maneira esta prática da Coroa havia ocorrido. Neste sentido, objetivamos a reflexão sobre a política do governo joanino voltada para quatro locus de cultura da sede do Império Português, seja Lisboa ou Rio de Janeiro. A escolha da investigação recaiu sobre a imprensa interatlântica, os Reais teatros, as Reais Academias Militares e as Reais Bibliotecas Públicas da Corte, uma vez que esses espaços mantêm uma característica em comum: em graus díspares, todas essas instituições foram prioritariamente locus de produção e circulação de informação e saber, além de impulsionarem a discussão e a sociabilidade pública. Ademais, todos os espaços foram pensados, estruturados e vivenciados pela sociedade joanina, tendo o forte incentivo governamental pautado pelo diálogo com as luzes advindas da cultura da Ilustração.
A opção por esses quatro locus (e não outros) igualmente se justifica pelo nosso interesse em compreender suas particularidades culturais. Meu desígnio, contudo, não era produzir quatro teses diferentes – uma para cada instituição de saber/cultura –, mas, antes, visualizar em que medida existia um elo entre esses espaços. Isto é, interessava-me conhecê-los através da percepção das diferentes estratégias administrativas do governo joanino para cada uma dessas instituições, em que pese (em um âmbito mais amplo) a política imperial ilustrada como mola mestra da sustentação do Império luso-brasileiro, mormente em um momento de grave crise política. Nesse universo, a diversidade de fontes manuscritas e impressas de pesquisa foi central: jornais, gazetas, documentação diplomática e administrativa, peças de teatro, cartas de súditos para além-mar, obras memorialísticas e de viajantes, catálogos etc. compôs o manancial de documentos investigado ao longo de cinco anos em arquivos brasileiros e portugueses, com destaque para: Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional de Lisboa, Arquivo Nacional no Rio de Janeiro e Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
O recorte temporal desse trabalho é a governança de D. João (1792-1821) nos dois lados do Atlântico, sendo o ponto de partida da nossa investigação o início de sua Regência de fato (1792) e o ponto final, o seu retorno a Lisboa (1821). Assim, o primeiro capítulo do livro investiga os possíveis sentidos discursivos da imprensa interatlântica joanina e o debate entre os principais jornais produzidos em Londres, O Correio Braziliense (1808-1822) e O Investigador Portuguez em Inglaterra (1811-1819), com especial atenção para a relação entre o monarca D. João e o jornalista Hipólito José da Costa. As demais produções periódicas financiadas ou apoiadas pela Coroa portuguesa como a Gazeta do Rio de Janeiro, O Patriota e O Observador lusitano em Paris também foram foco de análise. Nesse sentido, repensamos o papel da própria imprensa como fonte e objeto de pesquisa para história da cultura, assim como tentamos evidenciar a importância da imprensa interatlântica como elo fundamental de sustentação da política e das ações culturais de D. João demonstradas, também, pelos bastidores da diplomacia portuguesa nos dois lados do Atlântico. As discussões públicas de temas caros à formação da opinião pública mostraram como a condução da pena desses homens de letras tinha uma missão comum: o debate acerca dos melhores caminhos para que a sociedade civil luso-brasileira fosse instruída e educada dentro da concepção de progresso da época, cujo sentido estava intrínseco ao adiantamento em proveito das artes e ciências, dois campos do saber ainda tão interdependentes e vinculados à força do pragmatismo pedagógico.
O segundo capítulo tem como tema a estruturação e vigência dos principais teatros régios nos dois lados do Atlântico, o Teatro de São Carlos, em Lisboa, o Teatro de São João, no Porto, e o Teatro de São João, no Rio de Janeiro. O foco de análise é a compreensão da importância do teatro como locus de cultura fundamental da política cultural joanina, concebido como uma prática espiritual não secularizada com intuito pedagógico e civilizador pelos dramaturgos, atores, empresários teatrais e ministros régios. Nesse sentido, discutimos a relação da vigência do espaço de cultura com a transmissão dos valores morais a serem difundidos na sociedade de Corte; fator indissociável da formação moral dos súditos ilustrados da monarquia luso-brasileira.
O capítulo terceiro tem como tema a estruturação e vigência dos principais locus de cultura científica no Império Português, com destaque para a Real Academia de Ciências de Lisboa e a Real Academia Militar do Rio de Janeiro. Precisamente, a discussão gira em torno da capitalidade imperial do governo português, sobretudo dentro de um contexto histórico beligerante europeu, no qual o Reino sofreu três invasões do exército de Napoleão Bonaparte, além de circunscrevê-lo como um espaço primordial de educação formal dos súditos ilustrados da monarquia luso-brasileira. Com as Reais Academias Militares a Coroa portuguesa objetivava metas ainda mais ousadas. Para além da educação moral dos súditos, calcada no respeito à hierarquia militar, primava-se pela formação intelectual institucionalizada desses sujeitos. Ao valorizar o estudo em diversos níveis – das primeiras letras à produção e apreensão de um conhecimento científico de ponta –, a Coroa buscava garantir a segurança territorial do Império Português em tempos de paz ou em tempos de guerra. Assim, com a alta profissionalização do exército real, o governo joanino também almejava a formação de um amplo contingente de mão de obra civil especializada: os engenheiros, que cuidariam das obras de infraestrutura nos dois lados do Atlântico. No Brasil, especificamente, o espaço também teve um viés simbólico muito forte: a estruturação e defesa deste amplo território apagava a mácula da humilhação política vivida pela Coroa Portuguesa ao transladar a capital do Império para a América, às vésperas da invasão de Napoleão Bonaparte a Lisboa. Enfim, se as Reais Academias Militares visavam, no plano ideal, provar a grandeza e solidez do Império, no plano real, enfrentaram grandes obstáculos e dificuldades: para além dos problemas infraestruturais – com a carência de material pedagógico e corpo docente e discente – a Real Academia Militar era um projeto exclusivo de d. Rodrigo de Sousa Coutinho. Com a sua morte, portanto, as objetivações de seus ideais ficaram em segundo plano para os ministros que o sucederam. A despeito disso, a exaltação do discurso de valorização do progresso através do conhecimento científico foi uma tônica imprescindível que extrapolou os muros da instituição e constituiu uma característica típica da figura do militar no período joanino. Ademais, foi também das salas da Real Academia Militar que se iniciou a formação dos quadros políticos que comporiam a administração estatal ao longo da primeira metade do século XIX.
O quarto e último capítulo tem como tema a compreensão da importância das Reais Bibliotecas, com destaque para a Biblioteca Pública de Lisboa e a Biblioteca Pública do Rio de Janeiro. A política cultural joanina na transladação, estruturação e vigência da Biblioteca de Lisboa para o Brasil, assim como a figura do bibliotecário como agente fundamental no processo de secularização do saber são os focos de nossa discussão. Nesse sentido, discutimos em que medida era fundamental para a Coroa portuguesa possuir uma Real Biblioteca na sede da sua residência, reiterando a produção de novas práticas culturais no universo da cultura letrada, que é indissociável da formação intelectual dos súditos ilustrados. A constituição das Bibliotecas Reais foi um projeto ambicioso da Coroa portuguesa desde D. João V (1706-1750). Se o riquíssimo acervo da Biblioteca Real ficou entre os escombros do terremoto de 1755, os reinados de D. José I, Dª Maria I e D. João VI tratariam de manter uma sistemática política de recuperação do espaço (com a formação de novos acervos) através da constituição de três novos locus: a Real Biblioteca d’Ajuda (1756), a Real Biblioteca Pública da Corte (1794) e a Real Biblioteca do Rio de Janeiro (1810). O árduo esforço governamental para a consolidação desses lugares de cultura no Império Português é intrínseco à força simbólica de uma Biblioteca Régia na Idade Moderna: estas eram o lugar da memória da monarquia, representavam a superioridade intelectual e independência política do Império. E por essas razões, D. João não mediu esforços para o sucesso do processo de transladação da Biblioteca Real para a nova capital imperial, o Rio de Janeiro.
Neste contexto, com a formação e vigência de todos esses novos espaços de cultura e saber, a nova capital do Império (Rio de Janeiro) começava a igualar-se em muitos sentidos à antiga sede do poder (Lisboa). Esse processo histórico evidenciou uma questão central: onde o Rei se encontrasse, os símbolos e expressões do seu poder estariam presentes, ratificando a sua força e superioridade dentro de uma visão ilustrada de mundo. Dentro dessa ótica, essa investigação não esgota as múltiplas possibilidades de estudo acerca dos loci de cultura/saber ou mesmo das ações governamentais isoladas do Estado monárquico luso-brasileiro no universo da cultura. Pelo contrário, meu estudo é apenas uma tentativa inicial em busca da compreensão da complexidade intrínseca à vigência dessas ações culturais em um âmbito oficial que perpassaram o governo joanino ao longo de pouco menos de três décadas (1792-1821). Talvez, essa busca quase obcecada em descortinar o que possa ter sido a política cultural de D. João seja mais uma leitura possível acerca de um período histórico já clássico dentro da historiografia luso-brasileira.
MEIRELLES, Juliana Gesuelli. Política e cultura no governo de D. João VI: imprensa, teatros, academias e bibliotecas (1792-1821). São Bernardo do Campo, SP: Ed. UfAbc, 2018.