Aspectos sentimentais da Revolução Paulista de 1932

Sentimental aspects of the Paulista Revolution (Brazil, 1932).

Por Alcy Gigliotti – magistrado, escritor (in memoriam). Sócio fundador do IHGG Campinas.

Completa-se a 9 de julho, mais um aniversário das lembranças dos acontecimentos que ocorreram no Brasil no distante ano de 1932. É um longo interstício, mesmo para um fato histórico notório que empolgou a nação e trouxe-lhe consequências de várias ordens, desde a tragédia até a glória. Como todos os fatos registrados pela história, quando importantes, cercam-se as narrativas e as análises de uma nuvem de mistérios.

Na arguta observação de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, em seu monumental Dicionário da língua portuguesa – Novo Aurélio -, destaca-se um dos tópicos entre os por ele arrolados no vocábulo história: “História. 2. Conjunto de conhecimentos adquiridos através da tradição e/ou por meio dos documentos relativos à evolução, ao passado da humanidade”.

Em meu livro Poemas sem tempo publiquei, sem título e como uma
espécie de explicação, os seguintes versos:

“Tudo é uma questão de saber.
Nem tudo o que acontece se conhece,
mas o conhecido
do que acontece
é sempre a marca do saber
integrada em nós …
Junte-se ao fato da vida
conhecido
a opinião pessoal
sadia
e se terá
a crítica, se objetiva,
e, se subjetiva,
a poesia!”

É claro que seria sempre exigível apenas testemunhas quando se examinara os fatos históricos, sobretudo. É claro também que a veracidade e a verdade final nessa ocasião despontam mais forte do que exames posteriores por historiadores que não assistiram aos eventos principais. É, ainda, certo que nem tudo do que acontece é captado mesmo por testemunhas presenciais.

A história, contudo, por sua beleza e riqueza principalmente de objetivos, quais sejam a preservação veraz dos fatos, remanesce intacta de desconfianças, quando a análise se reveste de objetividade e honesta predisposição do analista.

Daí por que, neste artigo tão longínquo de tudo o que envolveu a idealista rebelião, resta a um observador estudioso a oportunidade de, na esteira de narrativas e análises de historiadores honestos, reviver a epopeia com cautela e desejo apenas de evitar o perecimento da sentimentalidade que cercou o inquestionável heroísmo dos revoltosos por uma causa digna e necessária.

As revoluções jamais se assemelham. A cada uma, aqui ou nas mais longínquas nações, apresentam-se condições e condicionamentos preliminares e, ao ensejo das refregas, tantas são as diatribes e os detalhes que até se tornam mais específicas e facilitadas as reais e verdadeiras (o mais possível) observações.

Convém, igualmente, acentuar que, diante da importância dos fatos históricos que se reúnem em torno de um ideal, a quantidade de informações que surgem pós-acontecimentos acaba trazendo um tão precioso manancial, às vezes tormentoso.

Serve, aqui, ainda a argúcia do Aurélio: “Análise: […] 3. Exame de cada parte de um todo, tendo em vista conhecer sua natureza, suas proporções, suas funções, suas relações etc. […] 5. Estudo pormenorizado; exame; crítica […]”.

Nos fatos históricos sob exame, há que se estabelecer desde logo tratar-se de um episódio globalizante de ordem política. Fatos anteriores à eclosão armada se caracterizaram como situações evidentes de descontentamentos com a estrutura política da nação, carente de uma Constituição, sob o jugo de individualidades que influíam no equilíbrio geral entre os estados, sem dúvida emergentes de outro Movimento Revolucionário que teria deixado de cumprir objetivos primários para a consecução dos objetivos norteadores.

Nesse caso, ter-se-ia a eclosão de uma rebelião armada, uma revolta com conflagração e sublevação e, mais, o objetivo precípuo de obter “uma transformação radical e, por via de regra, violenta de uma estrutura política, econômica e social” em nome de ideias e ideais distintos nos impostos pela anterior revolução pretensamente salvadora.

O Brasil ainda se encontrava sob a égide de uma nova realidade, a Revolução de 1930, que deixou as mais profusas e profundas divergências políticas, com a ascensão presidencial, por força das armas e de muitas vidas inocentes, do gaúcho Getúlio Dornelles Vargas. Seu companheiro de chapa para vice-presidente, o paraibano João Pessoa, foi assassinado e se instalou no fato um sentimento de revide, mesclado a ideais e ideias que defendiam a regulação das relações patrões – empregados e a implantação da Previdência Social no país.

São Paulo já era considerado o mais poderoso estado, diante do respeito adquirido por ser o mais populoso, progressista e economicamente forte. Nas constantes trocas e indicações de interventores, feriu-se São Paulo com a nomeação de governantes de outros estados para dirigirem os seus destinos e implantarem ordem e organização ao estado. Alegava-se também a inércia da ditadura estabelecida que nada fazia pelos próprios e até respeitados princípios que a Revolução de 30 erigira. Já se acusava de ditador Getúlio; não se elegeu o Congresso; não se obedeciam as frágeis leis que sobraram e, sobretudo, não se falava na Constituição que daria à nação as regras básicas e sacralizadas para viver efetivas características de estado livre e capaz.

Desde o início, aliás, sobejaram nomeações indesejadas e repulsa a várias delas. Surgiu então a dicotomia União – estados e se entendia que o governo se curvava a diretrizes emanadas de ideais de força para a manutenção do poder. Efetivamente, surgiam em decisões importantes os nomes de militares como Góes Monteiro, Miguel Costa, Isidoro Dias Lopes, Francisco Ramos de Andrade Neves, Bertholdo Klinger, Espírito Santo Cardoso. Condenava-se, outrossim, a possibilidade de conjurações, afirmando o governo que não se curvaria a influências das direitas ou esquerdas. Surgiam já o major Juarez Távora, Maurício Goulart, Oswaldo Aranha. Na área civil estavam Plínio Barretto, José Maria Whitaker, José Carlos de Macedo Soares, Vicente Rao, Cardoso de Mello Netto, João Alberto Lins de Barros e Laudo de Camargo, todos com lideranças reconhecidas em várias áreas, política, econômica, judiciária. Todos além de muitos outros que se iam revezando em secretariados organizados pelo interventor nomeado pelo então Governo Provisório da República.

O certo é que muitos desacertos fomentavam intenso descontentamento e se delineavam os objetivos determinantes da movimentação política contrária ao poder. Exemplo disso é a união ocorrida em 16 de fevereiro de 1932 entre os Partidos Republicano Paulista e Democrático de São Paulo, que anunciavam:

“[…] aos seus correligionários, aos seus conterrâneos e a quantos aqui colaboram no desenvolvimento de nossa grandeza moral e econômica, que está feita a união sagrada dos paulistas, em tornos dos dois problemas que envolvem todas as nossas esperanças e destinos: a pronta reconstitucionalização do país e a restituição a São Paulo da autonomia de que há dezesseis meses se acha esbulhado”.

O anúncio trazia a assinatura de eminentes homens públicos, todos com primorosos serviços prestados à vida e à política do estado, sendo em número de 37 os signatários.

Já se realizavam comícios em praça pública defendendo tais ideais.

Formara-se uma “frente única” agressiva para lutar a favor da autonomia de São Paulo. Houve tentativas de conciliação para, dizia-se, permitir a governabilidade do estado, sem êxito. De repente, tudo explode.

Um grande e entusiasta comício se instala a 22 de maio de 1932 na Praça Patriarca. Em 23 de maio, o povo enche as ruas da cidade e se distribuíam armas e munições a quem as quisesse. Travou-se um renhido tiroteio entre a mocidade das escolas, sempre heroica e épica, e alguns legionários do governo. Nessa escaramuça perderam a vida Márcio, Miragaia, Dráusio e Camargo, cujas primeiras letras dos nomes formara o MMDC, que até hoje persiste em existir na preservação da dignidade paulista.

Em 9 de julho de 1932, foi irradiado para o país o despacho de deflagração do Movimento Revolucionário, em lacónico e objetivo texto:

“De acordo com a Frente Única Paulista e com a unânime aspiração do povo de São Paulo e por determinação do Gen. Izidoro Dias Lopes, o Coronel Euclydes Figueiredo acaba de assumir o Comando da 2ª Região Militar, tendo como chefe do Estado Maior, o Coronel Palymércio de Rezende.
A oficialidade da Região assistiu incorporada no Quartel General, a posse do Coronel, nada havendo ocorrido de anormal. Reina em toda a cidade intenso júbilo e o povo se dirige em massa aos quartéis, pedindo armas para a defesa de São Paulo”.

Para justificar todas as emoções que derramavam sobre os paulistas, basta transcrever fala do grande tribuno lbrahim Nobre, que se tornou página de rosto do livro Verdades da Revolução Paulista, do capitão Gastão Goulart:

“És paulista?! Ah! Então tu me compreenderás! Trazes, como eu, o luto na tua alma e lâminas de fel no coração. Ferve em teu peito a cólera sagrada de quem recebe, em face, a bofetada, o insulto, a vilania, a humilhação.
Minha voz, que entre cólera se alteia, é tua dor também!
Minha voz é murmúrio, e marulho, é o eco pobre, de sete milhões de angústias indormidas, de sete milhões de ódios, através do pudor de todos nós.
És paulista?’ Então tu bem escutas esse fundo clamor, sísmico, enorme; esse estertor, esse gemer, esse lamento, rasgando túmulos, esventiando a terra até os seus mais imos penetraes! São soluços das cinzas agitadas!
O espírito das tumbas estremece! A voz dos nossos mortos se alevanta!
Desfaça-se uma Hóstia! Deus permanece uno, indivisível em cada radiúnica partícula. Assim, não se desfaz a vida, ao abraço molecular da transformação. A Terra que foi carne, mantém em cada átomo, em cada grânulo, a unidade cósmica.
Na arca descarnada desse peito, essa pouca de poeira é a síntese de um desdobramento! Nela palpita o coração de outrora, sacudido pelo mesmo turbilhão.
A voz dos nossos Mortos se alevanta!
Em cada crânio, em cada arcabouço. já desfeito, em cada tíbia que branqueia, há uma inúbia ululando a voz mais alta, o clamor pontiagudo e apunhalante, apelidando nossa alma para a causa, conclamando a nossa Honra para a luta”.

O escritor e poeta Expedito Ramalho de Alencar, em uma frase simples e objetiva, bem revelou os pródromos emocionais da Revolução Paulista de 32: “O protesto contra o arbítrio e os desmandos do governo deram origem à Revolução Constitucionalista de 32”.

Refere ele também a opinião de Paulo de Barros Camargo, um dos poucos sobreviventes da Revolução de 32, que ainda reside em Campinas, onde é o grande sustentáculo da preservação da dignidade, do destemor e da audácia do povo paulista em defesa de uma pátria melhor e mais justa: “[…] era um imperativo nacional a volta do país aos quadros constitucionais. E nesse ideal, São Paulo estava à frente”.

No livro do capitão Gastão Goulart encontra-se a seguinte afirmação: “São Paulo suportou galhardamente, nos baluartes das suas linhas divisórias, o peso formidável de 72.600 homens do exército adversário, otimamente aparelhado e com os seus quadros de oficiais completos, tendo ainda que combater o inimigo que minava suas organizações internas”.

A luta armada durou exatamente 85 dias e a história confiável dá conta do heroísmo de um povo desarmado, buscando forças no entusiasmo do povo que inteiramente se entregava a dois ideais determinados que não eram apenas seus, mas de toda a nação.

Contudo, essas forças se exauriram e, em fins de setembro, reconhecia-
se a impossibilidade de se continuar a luta armada, diante das circunstâncias da evolução dos combates e da evidência da superioridade das forças governistas em face daquelas, já mirradas, dos revolucionários.

Em 2 de outubro de 1932, era assinada uma Convenção Militar com as “bases da rendição” e, posteriormente, a 3 de outubro de 1932, uma Proclamação denominada Cessação da Guerra, publicada “pelo ex-governo paulista, a qual é integrante da história do movimento de nove de julho”.

O texto é quase uma justificativa da Revolução. Há frases turbilhonantes, como esta:

“Com altaneria de espírito e serenidade de razão, demonstrou o povo paulista nesta epopeia sem igual, a firmeza de seu pulso, a largueza de suas vistas e a amplitude do seu sentimento nacional. A página, que agora coloriu com o seu sangue, há de permanecer imortal aos olhos de todo o Brasil, como a mais inequívoca demonstração da sinceridade de sentimentos com que se entregou à causa da rápida constitucionalização do país”.

Os termos finais do documento são definitivos:

“Cessa destarte a vida do governo constitucionalista aclamado pelo povo paulista, pelo Exército Nacional e pela Força Pública e hoje por esta deposto. Fica encerrada, nesta faixa do território brasileiro, a campanha militar pela restauração do regime legal. Mas o anseio não se sopitará. Comprimida, a campanha há de expandir-se certamente, por não ser possível que um povo, como o nosso, persista em viver num regime de arbítrio.
Deu São Paulo tudo quanto podia dar ao Brasil, tudo empenhou em prol de sua reorganização político-administrativa. E disso não se arrependerá.
O seu governo, instituído pelo povo paulista, com o apoio das forças armadas, encerra o seu ciclo histórico. Antes, porém, que se lhe extinga a vigência afirma que cumpriu o seu dever.
Tudo por São Paulo!
Tudo pelo Brasil!
Firmam o documento: Pedro de Toledo – Valdemar Ferreira – Paulo de
Moraes Barros – J. Rodrigues Alves Sobrinho – F. E. da Fonseca Telles – Francisco da Cunha Junqueira – Godofredo da Silva Telles – Joaquim A. Sampaio Vidal e Thirso Martins”.

Do exílio, na época, Valdemar Ferreira, um grande professor e jurista, dirigiu sua linda página, Palavras do exilio, que dedicou aos bacharelandos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Há um trecho delas, em prosa, que é um verdadeiro poema:

“[…] é de inquietude o minuto. Trepidam desejos insatisfeitos. Enervam-se os espíritos pelo suceder de agitações imprevistas. Perturbaram-se os sentidos na multiplicidade das paixões desencadeadas. E a ânsia de viver, aguçada pela vertigem do século, veio a ser mais alucinante. Generalizou-se o desequilíbrio de um cosmos estratificado pela superposição das gerações. Tudo se foi mudando na imaginação e também na realidade. O exagero das dissonâncias rompeu a unidade total, transmudando-se as regras da música pela implantação da polirritmia. Banida a riqueza da modulação e substituída pela mudança de tom, áspera e dura, encheu-se a harmonia de síncopes. Quebrou-se a dinâmica musical. O ruído turbilhonante da vida moderna abafou as expressões suavíssimas da alma humana, que perdeu, assim, a sua poesia. Também esta, habituada a exteriorizar todos os sentimentos, desde a esperança ao desespero, provocando o êxtase e dando o consolo, se desarticulou. As promessas de amor morreram, definitivamente nas gargantas. Desmancharam-se as frases sonoras em palavras soltas e sem ligação. O verso, sem sentido e sem rima, deformou-se”.

E o poeta da Revolução, o paulista de Campinas, Guilherme de Almeida, escreveu para o túmulo dos revoltos os mortos e sepultados nesse formoso quase-santuário do frontispício do Cemitério da Saudade, estes versos magníficos, santificados:

“Não é túmulo. É berço. É sementeira de ideal, baliza do futuro. Pista. Rastro de heróis na terra campineira. Sobre eles, cor a cor, lista por lista, eternizou seu vôo essa bandeira, petrificou-se o pavilhão paulista. Bandeirantes, por vós, nesta jazida velam as pedras, que esta morte é Vida”.

A Revolução Paulista de 32 foi uma epopeia. As páginas narrativas do heroísmo, da coragem, da ousadia, do Amor, da Doação, da Fé e da Esperança, tudo matizado por uma cega confiança no porvir mais justo e mais risonho.

Ela reside na história brasileira. São livros, telas, revistas, cartazes, narrativas orais intermináveis e verídicas, que formam um relicário de espantosa beleza e solidez.

Por isso não pode e não deve ser esquecido esse fato histórico repleto de fatos históricos catalogados na lembrança inesquecida e jamais ausente. Em mais um aniversário de sua eclosão, que aconteçam os eventos mais dignificantes, nunca aliás tanto quanto o que efetivamente aconteceu. Não minimizem nem esqueçam o 9 de julho. É data indispensável para estimular a pátria e todas as suas gerações.

Uma trova final:

“Saga heroica dos paulistas Nove de Julho teceu.
E na história das conquistas Luzes de paz acendeu!”

Publicado na Revista do IHGGC, N.1. Campinas: Komedi, 2008, pp.37-44.

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