Padre Landell contra o demônio da mesmice

Father Landell against the sameness demon.

Por Sérgio Galvão Caponi – engenheiro, escritor. Titular da Cadeira 22 do IHGG Campinas.

Das muitas manifestações da mediocridade, a mesmice sempre se afigurou das mais deletérias. Entenda-se por mesmice não a burrice compactada em conservadorismo compulsivo e inconsequente, mas o demônio possessivo que se apodera das almas e que, num ruflar de asas, sobrevoa a realidade, ensombreando-a com a capa negra do inconfessável.

Difere, pois, do marasmo, posto que atitude e propósito. Na sua obscuridade, esconde medos inconfessáveis, interesses e conveniências.

Outro não foi o caso, mais trágico que burlesco, do aqui ocorrido no crepúsculo do século XIX.

No contraditório ao suposto oásis de civilização da Campinas de então, registre-se que o episódio campineiro de caça ao bruxo Roberto Landell de Moura se constitui mera conta num rosário de mistérios dolorosos.

Landell era um daqueles cuja leveza de alma e fluidez de intelecto restava sobre a realidade pastosa como uma espuma sobrenadante. Era demasiado claro para passar despercebido aos que lhe pudessem invejar e temer a proeminência. Além de tudo, carregava um estigma, para muitos, intolerável. Era padre. Era padre por físico e físico por padre. Não lhe fora nunca a vocação sacerdotal entrave para a ciência, nem esta para o sacerdócio.

Pelo contrário, na arena em que o vulgo vê a fé antagonizar-se com a razão, em que Darwin ainda se digladia com Bento XVI e com Bush, Landell as conciliava como leão e cordeiro de um só paraíso.

Seu aparelho radiofônico, como dissera, tinha potencial para falar tanto em toda a Terra como, e hoje se atesta, com outros mundos. Não era esta, simplesmente, uma antevisão profética das viagens interplanetárias, num frasear imprudente de cujas interpretações equivocadas tantas amarguras colheria, mas um irradiar de ideias estranhas ao universo constrito da turvada visão de Rodrigues Alves que, num achaque de tacanhice, lhe negara os navios para os testes, em contraponto inqualificável à Itália, que dava a Marconi todo apoio.

Ideias, também, estranhas ao universo intramuros do Vaticano que, num ato descabido, lhe proibira o ofício das missas aos capitalistas norte-americanos que lhe dificultaram as patentes na faina de saborear seus frutos.

Um contraste, maior ainda, evidenciou-se quando confrontadas com o mundo tenebroso dos fanáticos religiosos locais, uma minoria festiva e presunçosa que, bafejada por espíritos matreiros, acreditava ver na radiofonia uma porta para o inferno, de que outros diabos, que não o da mesmice, pudessem escapar.

Desse mundo tenebroso é que surgiram as mãos que lhe empastelaram o laboratório e quebraram o protótipo com que transmitira, em 1893, portanto, um ano antes de Marconi, a voz humana, e não meros sinais, de Santana até a Avenida Paulista.

A todos se contrapunha e incomodava aquele espírito dócil, porém arrojado que, para mal dos pecados e dos pecadores, cheirava incenso e vela de sacristia. Quem sabe não é desse esfumaçar de velas e incenso que ainda se obstrui a visão deste que, por certo, foi dos maiores gênios das Américas.

Aos que trazem, de soslaio, um risinho no canto da boca, anteponho, entre outros inventos e teses, a telefonia ótica, antevisão da comunicação de dados e voz por fibra ótica, o telefotograma, predecessor da televisão e a válvula tríodo que equivale em função às válvulas dos antigos rádios, aos transistores e ao atual chip, sem que se esqueça, é claro, do telégrafo sem fio e do rádio.

Campinas, em que pese a desafortunada atitude de alguns poucos lunáticos, pode, porém, orgulhar-se de aqui ter sido inventado e construído o primeiro par de aparelhos transmissor e receptor de radiofonia.

Ao lado dos nomes de Carlos Gomes, de Hércules Florence, o injustiçado inventor do negativo fotográfico e de tantos outros portentos que aqui nasceram ou moraram, é mister juntar o nome desse gaúcho que aqui viveu, exatamente, naqueles poucos anos em que inseriu seu nome no rol dos grandes pioneiros da modernidade.

Resta-nos, dessa história mal contada, o consolo da verdade e da dignidade deste que, a despeito das circunstâncias, nos legou o milagre do controle das ondas hertzianas, ou, como ele melhor as chamou “landellianas”, as quais, hoje, se prestam a uma infinidade de propósitos que o próprio Landell jamais imaginou.

Um comentário

  1. “Quem sabe não é desse esfumaçar de velas e incenso que ainda se obstrui a visão deste que, por certo, foi dos maiores gênios das Américas.” Juntamente com Carlos Gomes e Hercules Florence, e graças a Deus esses dois últimos estão sendo reconhecidos, mas Padre Landell ainda está na obscuridade! Parabéns pela publicação!

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