Urbanization and criminality in Campinas, SP, Brazil (1880-1930).
Por Fernando Antonio Abrahão – historiador, pesquisador. Titular da Cadeira 11 do IHGG Campinas.
Os noticiários sobre a criminalidade estão em todas as mídias. Sempre foi assim, mas hoje a saturação do assunto decorre da diversidade de mídia e a rapidez de como é difundido. Outro ponto a salientar é a lista de crimes que se transforma com o dinamismo da sociedade. Exemplos são os processos vinculados à “Operação Lava-jato”; e, pior, quando outros nos atingem diretamente, como os crimes de apropriação indébita ou extravio monetário que a recentíssima “Internet” propicia, infelizmente, como efeito colateral da atual revolução econômica.
Como historiador do Centro de Memória – Unicamp (CMU) e responsável pelos seus arquivos históricos por 30 anos, interessou-me, também, apresentar as conclusões sobre o meu estudo da criminalidade em Campinas no momento em que esta se assume como um município próspero e progressista, características que vem lustrando até os nossos dias.
Nessa análise que me valeu o título de mestre em História Social do Trabalho pelo Departamento de História da Unicamp, elegi o período de 1880 a 1930 porque registra transformações sociais, políticas e econômicas, como o auge e as crises da economia cafeeira, a libertação dos escravos, a chegada dos imigrantes em grande número, as epidemias, as obras de infraestrutura, o debate político, a urbanização, o aumento populacional, enfim. Dai surgiram os questionamentos: como se comportou o fenômeno da criminalidade em meio a tantas transformações? Quais eram as preocupações daquela sociedade e quais parâmetros e ações podem ser comparados?
Pois bem, segundo os censos oficiais, em 1880 – a baliza inicial do período estudado – habitavam em Campinas pouco mais de 36 mil pessoas, praticamente o mesmo contingente da Capital. A riqueza daqui concentrava-se na produção cafeeira e nas atividades a ela ligadas. Crescer significava expandir a produção agrícola e essa expansão exigia constante aumento de mão de obra que, lembre-se, consistia de elementos escravizados. A necessidade de aquisição de mais braços elevava os preços desses indivíduos.
Esse encarecimento propiciou a inserção de trabalhadores imigrantes. Em 1882, aparecem os primeiros registros da chegada de europeus com bilhetes de viagens pagos pelo governo paulista. Todavia, a primeira grande onda migratória ocorreu mesmo em 1886, no momento de extrema necessidade de suprimento da mão de obra para o segundo grande surto expansivo do café.
Além das atividades ligadas ao café, consolidaram-se os segmentos intermediários da economia: comércio e manufaturas, estabelecimentos escolares e hospitalares. A urbanização impulsionada pelas estações ferroviárias alterou profundamente o desenho da cidade, ampliando a área central com a consequente dilatação de seu perímetro. As principais ruas e avenidas foram alargadas, outras criadas, surgiram bairros, vilas e áreas distantes do centro passaram a ser valorizadas.
A ocupação do espaço urbano acentuou as desigualdades e colocou o cidadão diante da necessidade de aprimorar o convívio social. As horas de trabalho passaram a definir o bom cidadão e, para garantirem o engajamento de todos, os políticos locais definiam as posturas municipais (como eram chamadas as leis locais), promulgadas, geralmente, para a regulamentação do uso dos espaços públicos e privados e a delimitação de períodos de lazer.
As epidemias de febre amarela atenuaram o crescimento econômico. Todavia, o quadro caótico tornou-se mote da implantação de políticas públicas cujos resultados positivos alteraram permanentemente o cotidiano.
A cidade retomou seu crescimento. Já na virada do século XIX para o XX, a população local passou de 67 mil habitantes, continuando a crescer 3,6% ao ano até 1920, quando atingiu pouco mais de 115 mil pessoas. Porém, esse ritmo foi inferior ao da Capital, que no mesmo período registrou taxas próximas a 14% ao ano.
A economia diversificou e essa expansão estimulou pequenos e médios proprietários rurais ao plantio de gêneros alimentícios, um ramo econômico que sempre existiu, pois que alimentar essa população dependia disso. Não podemos generalizar um cenário histórico onde havia o café, o escravo e o imigrante pobre de um lado e os fazendeiros e capitalistas de outro. Não é verdade, pois há registros de camadas medianas ativas na economia local e que foram ignorados em pesquisas, especialmente as mais antigas.
Porém, é certo que a ampliação das fronteiras agrícolas ao norte e oeste de São Paulo e a industrialização da Capital levaram daqui considerável contingente de mão de obra. Assim, a taxa anual de crescimento da população não ultrapassou a 1% entre 1920 e 1930, atingindo pouco mais de 127 mil habitantes no fim do período estudado.
Esse deveria ter sido outro período de crise. Todavia, a concentração urbana favoreceu a expansão das atividades secundárias e terciárias da economia local. A riqueza acumulada durante o auge do café foi direcionada para o fortalecimento de uma estrutura industrial de fabricação e montagem de máquinas agrícolas e de veículos transportes; metal e mecânica; transformação de alimentos, bebidas, vestuário e calçados, couros e peles; têxtil; móveis; tipografias; entre outras.
Com o impulso manufatureiro e industrial, as fábricas, residências, vias e praças públicas de Campinas receberam energia elétrica e algumas delas telefone. Os antigos bondes puxados por animais foram substituídos por tração elétrica. Surgiu o movimento de automóveis e caminhões. No âmbito do planejamento urbano, áreas afastadas do centro foram loteadas e destinadas a bairros e vilas operárias, configurando uma nova etapa da racionalização do espaço urbano.
Esse cenário ora de expansão ora de crises refletiu diretamente nas condições sociais e econômicas da população. Imaginando esse panorama, convido o leitor e a leitora a acompanhar a presente análise dos dados criminais a partir dos processos judiciais.
A figura abaixo apresenta os coeficientes estimados na relação entre o número de indivíduos incriminados e as populações totais correspondentes de cada quinquênio, conforme orientam os pesquisadores do Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e o Tratamento do Delinquente (ILANUD).
Os índices de criminalidade revelam o acanhado aumento no período 1880 até 1890. A sutil elevação pode ser explicada pelo maior número de denúncias de crimes cometidos por escravos, atitudes que refletem o ápice do sentimento de revolta destes contra a exploração do trabalho e as condições de cativeiro. Com o alto preço da mão de obra, os fazendeiros sepultaram o castigo modelar do escravo como forma de controlar o plantel, preferindo atribuir ao sistema judiciário, agora, esse controle.
Há aumento de casos de ataques e emboscadas contra o senhorio, seus empregados e capangas. São exemplos o assassinato de Tristão, administrador de fazenda de Francisco de Paula Amaral, pelo escravo Joaquim, em 1881, quando este decidiu fugir do cativeiro. O segundo é de Cambinda, escravo da família Villela na fazenda Santa Maria, que matou o também escravo Jorge, enfermeiro de Francisco Teixeira Villela, em 1885, para vingar-se do senhor por este negar sua venda para a fazenda de Piracicaba (SP), onde ele conviveria com sua antiga mulher e parentes.
Para ilustrar, infelizmente, os casos em que escravos foram mortos, cita-se o ocorrido em 1881 e envolveu Antônio, produtor de café, acusado de matar seu escravo Roberto Velho, 56 anos. O fazendeiro era conhecido por castigar cruelmente seus escravos, mandando surrá-los, queimá-los e, com eles amarrados, mandava lambuzar seus corpos com melaço para que insetos os atacassem ainda vivos.
A segunda causa provável do aumento dos índices de criminalidade nos primeiros anos do estudo relaciona-se com a chegada dos grandes contingentes de imigrantes italianos. Entretanto, uma parte expressiva dos processos contra esses indivíduos se constituía de denúncias referentes ao porte ilegal de armas. Porém, as denúncias sugerem que, ao emigrar, o indivíduo se preocupou com sua defesa pessoal e de sua família no país desconhecido. Tem origem o preconceito contra o imigrante.
Ações de injúrias e calúnias também se destacam no período em tela. Nesses processos, observam-se interessantes informações sobre a convivência conflituosa entre os elementos de uma mesma camada social, principalmente as mais abastadas, revelando inimizades baseadas em posições políticas, especialmente. A sociedade de Campinas convivia com difusores de matizes variadas de pensamentos e ideais. Os articulistas dos jornais da época rivalizavam, por exemplo, entre os que apoiavam o liberalismo republicano e os que desejavam a manutenção do conservadorismo e da tradição imperial, sendo notáveis a Gazeta de Campinas e o Diário de Campinas, respectivamente. Há casos que chegavam às vias de fato. Algo parecido com a situação atual, guardadas as devidas proporções dos meios de comunicação de massa.
Um processo criminal chamou a atenção justamente por confirmar o grau de convívio social. Trata-se do assassinato de André, por seu patrão Justo, empreiteiro, em 1890. O réu alegou legítima defesa da própria vida e foi absolvido. Porém, o promotor apelou da sentença, indicando o funcionamento de um aparelho telefônico próximo da sala onde os jurados se reuniam, sob a prerrogativa da incomunicabilidade. A existência de um canal ativo de comunicação estimulou a primeira discussão em torno da utilização e da eficiência do telefone, um dos principais inventos do fim do século XIX e que, em Campinas, estava disponível desde 1886.
Observa-se o declínio acentuado dos índices de criminalidade em 1895. Acredita-se no controle da polícia durante a condução da política de recebimento e distribuição dos imigrantes pelas fazendas, como também no controle dos recém-libertos. Os debates publicados nos jornais da época apoiam essa afirmação, já que é possível encontrar forte reação da sociedade contra as ações da polícia.
Além desse controle, há outro dado particular que explica a diminuição dos coeficientes da criminalidade. Trata-se das epidemias de febre amarela a partir de 1889, causando muitos óbitos e a mudança temporária de parte da população para localidades próximas e não acometidas pela doença.
A Figura mostra, também, o significativo aumento dos índices, que avançam até 1905. Essa elevação coincide com o período de crise econômica a partir de 1897, quando os preços do café caíram abruptamente e precipitaram a longa instabilidade que só seria amainada em 1910-11.
O desequilíbrio entre oferta e procura de trabalho atingiu a população economicamente ativa e refletiu na acumulação de riqueza e na qualidade de vida. A concentração urbana que se prestou inicialmente ao suprimento de mão de obra, agora, com a queda da atividade econômica, passou a ser uma das causas do aumento da criminalidade. Tal afirmação é comprovada na ampliação dos casos de réus que se declararam desempregados. O desemprego coincidiu com o aumento de autuações por mendicância e alcoolismo.
Conforme nos revela, ainda, a Figura, o período de 1905 a 1920 é marcado por índices de criminalidade elevados e relativamente estáveis. Apesar do quinquênio de 1920 indicar declínio, nota-se a ascensão do número de autuações de perturbações da ordem e vadiagem. Trata-se, justamente, do período de efervescência de movimentos reivindicatórios de trabalhadores estrangeiros e brasileiros considerados como ativistas de ideologia anarquista.
Há casos de repressão a trabalhadores de Campinas, como o ocorrido em 1906, na greve de ferroviários e operários das Companhias Mogiana e Paulista em solidariedade aos colegas da Companhia Paulista em Jundiaí. Esses processos avançam até os movimentos reivindicatórios de 1920, que registraram a expulsão de ferroviários e uma violenta participação da polícia em Campinas e no município de Casa Branca, na região Mogiana.
A repressão policial teve consequências trágicas em Campinas. Em 16 de julho de 1917, um grupo de operários das Companhias Mogiana de Estradas de Ferro, Mac Hardy Manufatureira e Importadora e Lidgerwood Manufacturing se postou na Porteira do Capivara, a passagem de nível na confluência da Avenida João Jorge com a Rua Visconde do Rio Branco, para impedir a saída do trem que levaria preso seu líder. Um pelotão da polícia deslocou-se para reprimir o movimento e atirou, matando três operários. O jornalista Álvaro Ribeiro descreveu a ação em seu livro: Falsa democracia, de 1927.
Os índices declinam significativamente entre 1920 e 1930. A riqueza gerada pela economia cafeeira havia diversificado, com maiores investimentos nas atividades industriais, comerciais e de prestação de serviços. A recuperação dos preços do café finalmente reergueu as atividades em geral, propiciando a abertura de novos postos de trabalho.
A concentração urbana do período também pôde ser verificada no aumento do número de homicídios em acidentes de trânsito. Se em tempos remotos ocorriam com carroças ou bondes, agora há registros de automóveis, como no caso de 1920, o primeiro acidente de automóvel com vítima fatal autuado pela Justiça. José dirigia seu automóvel Ford, de placa número 22, pela Rua Barão de Jaguara, quando, em frente ao Café Guarany, atropelou Juvenal, um infeliz garoto que atravessou a rua sem perceber que o automóvel se aproximava.
O momento de tensão do final do período – ilustrado pela crise mundial de 1929 – foi marcado por processos de falências de empresas. A última década deste estudo apresenta mais da metade de todos os casos de falências registrados e, desses, a maior parte ocorreu entre 1925 e 1930.
Concluindo, há fortes indícios do aumento da criminalidade nos momentos de crise econômica, de atração de trabalhadores urbanos e dos movimentos de reivindicações trabalhistas de 1906 a 1920, que aludem à diversificação e o desempenho das atividades econômicas relacionadas com a conformação de mercados de trabalho. Entretanto, o fenômeno da criminalidade esconde outros significados, que emergem da análise de características dos delitos mais expressivos: Homicídios, Furtos e Roubos e Crimes sexuais: que estão, amiúde, no Livro: Crimes e criminosos da Campinas cafeeira: 1880 a 1930, publicado pela editora Pontes em 2018.
O aumento da criminalidade não está ligado à pobreza. Relaciona-se com períodos de instabilidades econômicas e de grande fluxo de indivíduos no interior da sociedade, aqui, historicamente, diante de tensões geradas durante a saturação do regime de trabalho escravista e o florescimento do mercado de mão de obra que se seguiu aos grandes contingentes de imigrantes europeus dirigidos para as lavouras de café e, depois, às indústrias.
Neste caminhar por várias trilhas da história, procurou-se focar algumas questões que pedem aprofundamento, como a maioridade penal, a criminalidade feminina, os crimes de colarinho branco e até mesmo as peculiaridades socioeconômicas que indicam preconceitos e discriminações. A presente obra sugere essa objetividade e as fontes documentais proporcionam a realização.
Referências:
ABRAHÃO, Fernando Antonio. Crimes e criminosos da Campinas cafeeira (1880-1930). Campinas, SP: Pontes Editores, 2018.
KAHN, Túlio. Índice de criminalidade: construção e uso na área da segurança pública. Revista do ILANUD, n. 2, p. 1-58, 1997.
Professor Fernando Antonio Abrahão: parabéns pelo objetivo artigo!
Paulo Espíndola Trani
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