Mario Varolo: saga de uma família italiana

Mario Varolo: an Italian family saga.

Por Maria Eugênia de Lima Montes Castanho – educadora, professora. Titular da Cadeira 36 do IHGG Campinas

A imigração italiana no Brasil foi mais intensa entre 1880 e 1930. A maior parte dela se concentrou no estado de São Paulo.  Os italianos começaram a imigrar em número significativo para o Brasil a partir da década de 1870. Foram impulsionados pelas transformações socioeconômicas em curso no Norte da península itálica que afetaram sobretudo a propriedade fundiária. Na realidade, os camponeses foram em grande parte expropriados da terra (GONÇALVES, 2014). O pauperismo rural, as grandes fomes, tudo isso concorreu para a busca da porta de saída da Itália e a procura de novos lugares para viver. A grande imigração, especialmente para o Novo Mundo, começou pouco após a unificação da Itália, em 1861. Milhões de camponeses italianos, que não conheciam nada além do seu vilarejo de origem, tornaram-se emigrantes, de início na própria Itália, depois para a América, espontaneamente nos Estados Unidos, Canadá e Argentina, depois para o Brasil, subvencionadamente: o governo brasileiro pagava a passagem marítima dos imigrantes.

As regiões da Itália de onde vieram os imigrantes para o Brasil foram majoritariamente as do Norte-Nordeste, em especial o Vêneto e o Friuli. Tais regiões lideram a imigração nos períodos de 1878-1886, 1887-1895 e 1896-1902. Foi somente no período de 1903-1920 que a imigração sulista, notadamente da Calábria, passou a liderar o surto migratório para o Brasil (CALSANI, 2010). Aqui, o principal destino eram as fazendas de café do Oeste de São Paulo. A região de Campinas foi das que mais receberam imigrantes italianos. Os agentes de emigração foram grandes responsáveis pela vinda de italianos para o Brasil. Eles eram contratados pelas companhias de imigração. A viagem, por navio, partia dos portos de Gênova, no Norte, e, no Sul, de Nápoles. Alguns,  desencantados com a vida que passaram a levar no Brasil, retornavam à Itália, ou para aí permanecer ou, em certos casos, para novamente retornar à lida cafeeira na terra paulista.

Mas não é a imigração italiana como um todo que será tratada no presente artigo. O que se pretende aqui é focalizar um caso específico de duas famílias italianas que imigraram para o Oeste paulista e de parte delas que constituiu grupo familiar com larga descendência, nela figurando na segunda geração brasileira a autora deste texto.

mariaeugenia

Um recomeço em Roma

No dia 28 de março de 2018 foi publicada no Tribunal de Justiça de Roma uma sentença de reconhecimento de cidadania italiana por proposta apresentada pelo dedicado e competente advogado italiano Dr. Marco Mellone, PhD em Direito (University of Bologna and Strasbourg), de seis pessoas de nossa família (eu, Maria Eugênia, minha irmã, Maria José (Zezé), meus filhos Daniela, Sérgio Filho e Camila e minha neta Júlia, na altura a única que atingira a maioridade civil entre os oito netos). A decisão judicial declara sermos italianos desde o nascimento. A sentença se fundamenta no direito de sangue (jus sanguinis) a partir do ascendente comum italiano Mario Varolo.

Quem foi Mario Varolo, pai de Jandyra, avô de Zezé, de mim, de Diógenes? Bisavô de Daniela, Sérgio Filho e Camila? Trisavô de Júlia, Beatriz, Felipe, Marina, Maria Clara, Pedro, Matheus e Leonardo? Para fazer a narrativa em estilo machadiano, comecemos pelo fim: Mario Varolo faleceu em dezembro de 1945. Não o conheci, pois nasci em junho de 1946. No entanto, sempre nutri a esperança de vir a saber algo sobre ele. Para iniciar, procurei informações com uma prima com 13 anos mais que eu e que o conhecera. Essa prima me disse que ele era muito bonito, tinha olhos azuis, usava chapéu, não era alto. Ao contrário da nossa nonna Giuseppina, firme, decidida, seu marido e nosso nonno Mario era de natural calmo, de fala mansa. Falavam em italiano principalmente quando brigavam. Essa prima (Cida Fuzaro) disse que certa vez ele a levou para passear em um local onde geralmente havia circo, perto do Centro de Saúde de Campinas, e deu-lhe uma moeda de 10 centavos, o que a fez muito feliz, pois pôde comprar balas e outros doces. Disse-me que ele gostava de tomar um pequeno aperitivo antes do almoço (uma “pinguinha”), no que aliás não discrepava de tantos outros homens europeus. Tanto ele quanto Giuseppina gostavam de “jogar no bicho”, a loteria brasileira da época, que provavelmente as novas gerações nem conheçam, apesar da “fezinha” ainda permanecer no hábito de muita gente. Giuseppina era bastante ativa: parteira (nasci pelas mãos dela), costureira de calças masculinas, criadora de galinhas das quais vendia os ovos, benzedeira  muito procurada para tratar gratuitamente de pessoas que tivessem algum problema de saúde, além de diversas outras atividades. Entre estas, a de administradora das casinhas construídas no terreno espaçoso do Bonfim que conseguiu adquirir como fruto da imensa faina dela e do marido.  Minha pequena família (pai, mãe, irmã e irmão) conviveu com ela já idosa, pois antes de ser acolhida em casa morava sozinha, precisamente numa das pequenas casas edificadas no terreno aludido.

Mario foi um imigrante italiano que deixou o país natal aos 24 anos, com sua família, para buscar melhores condições de vida no Brasil. Veio da região do Vêneto, cuja capital é Veneza. Nessa região contam-se várias províncias, incluindo a de Rovigo, que abrange cinquenta cidades ou comuni, em língua italiana. Dentre elas está Adria, da qual Mario  saiu para vir ao Brasil; e está também Loreo, para a qual Mario, já casado com Giuseppina, retornou. Retornou? Sim, porque a vida, difícil no torrão natal, também se mostrou árdua no país de destino. Daí a tentativa, baldada, de reencontrar-se com a origem. Baldada: as coisas mostraram-se duras na volta à Itália e o casal acabou retornando ao Brasil.

Mario Varolo chegou ao Brasil no dia 6 de abril de 1896 no vapor Alacrita, com seu pai Giovanni (52 anos, de Bellombra, aldeia de Adria), sua mãe Luigia (47 anos, de Adria), o irmão Angelo com 11 anos, Francesco com 16 e Gio Batta com 7. Destino: Tanquinho, pequena estação ferroviária próxima a Pedreira. Em documento conseguido através de Rose Polimeni,  pouco conhecido inclusive por ela que reside na Itália há muitas décadas,  do Ufficio Anagrafe – Estratto dal Registro di Popolazione intitulato Situazione di Famiglia Originaria di Varolo, Mario, nato a Adria il 23.4.1871 ed emigrato a Loreo (RO) il 22.7.1906 in Via Chiappara consta:  VAROLO, Mario, predetto (retrorreferido), e em seguida a relação dos familiares: padre Giovanni, madre Luigia Braga, fratelli (irmãos) Francesco, Angelo, Gio Batta, Angelo Pietro, sorella (irmã) Elisa Teresa, Mara Rosa, Elisa e a nonna (avó) paterna Regina Borsa, nascida em Vila Nova Marchesana em 14/3/1823. Por este documento, obtido recentemente por mim (2016), conclui-se que a família de Mario só trouxe os filhos homens, deixando em Adria as filhas mulheres, talvez aos cuidados dessa avó paterna.

A família de Giuseppina, a “noninha Bepa”, avó com quem conviveram muitos de nós, incluindo nossos descendentes Daniela e Sérgio Filho, já que Camila ainda não havia nascido, veio completa: o pai Giovanni com 43 anos, a mãe Giacomina 45 anos, a própria Giuseppina com 17 anos, as irmãs e os irmãos Teresa 16 anos, Bartolomea 13 anos, Bartolomeu 12 anos, Concetta 10 anos, Francisco 8 anos, Giovanni 6 anos. Foram trabalhar para o fazendeiro José Botelho, certamente em Pedreira já que se dirigiram para Tanquinho também.

Certamente em Pedreira, Mario e Giuseppina se conheceram. Ali se casaram em 15 de setembro de 1900. Ela com 20 anos, ele com 27.

Desconhece-se como foram os duros tempos para eles e suas famílias. O fato é que ainda o Museu da Imigração registra que o casal Mario e Giuseppina (e a família de Mario) desembarcou novamente em Santos com destino a Tanquinho (Pedreira), voltando da Itália, em 1907. Esse retorno à Itália e a volta ao Brasil já foram atrás referidos.

Não se sabe quando voltaram para a Itália. Presume-se que ficaram bem pouco tempo em terra italiana.  É o que faz crer o documento do Ufficio Anagrafe já referido, que registra a ida deles para Loreo (emigrato a Loreo, RO), il 22.7.1906. E voltaram para o Brasil no ano seguinte! Em 4 de janeiro de 1907, provenientes de Loreo e embarcados no porto de Gênova no vapor “Bulgária”, chegaram: Mario (agricultor), Giuseppina e os filhos bem pequenos: Elizabetta (4 anos), Giovanni Battista (2 anos) e Regina (3 meses). Foram para a fazenda “Herança Baroneza Limeira”. No registro citado lê-se: “profissão: agricultor”. Em “Observação” está escrito: “espontâneo. Já esteve no Brasil”. Chegaram vindos da cidade (comune)  de Loreo, província de Rovigo. Portanto não deve ter sido a sua cidade natal de Adria e sim Loreo a localidade onde moraram nesse retorno à Itália. Hoje Loreo é uma pequena cidade italiana da região do Vêneto, província de Rovigo, com cerca de 3.714 habitantes. Estende-se por uma área de 39 km², tendo uma densidade populacional de 95 hab/km².

Também os pais e irmãos de Mario voltaram para a Itália e, em 3 de outubro de 1907, vindos de Gênova, desembarcaram novamente em Santos, no Brasil, no vapor “Sienna”: Giovanni (63 anos), Luigia (59 anos), Angelo (22 anos), Francisco (27 anos) e Giovanni Batta (19 anos). Seu destino: a propriedade da “Fazendeira: Dª Izoletta Aranha” (sic) .

A vida de Mario e, naturalmente, de Giuseppina e filhos foi difícil, extremamente laboriosa. Mesmo meio século depois da sua chegada ao Brasil as dificuldades continuaram por outros motivos. Um deles foi a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial (1940-1945), ao lado dos chamados “Aliados” (Estados Unidos, Grã-Bretanha e França) e contra o “Eixo” (Alemanha, Itália e Japão). Os italianos radicados no Brasil, bem como e em especial os alemães, sofreram todo tipo de restrição. Uma delas: a de locomoção. Só podiam viajar com um documento especialmente editado para tal fim chamado salvo-conduto. Era uma espécie de “passaporte interno”. Para ir de Campinas a São Paulo, provavelmente em visita a uma irmã, Giuseppina precisou de um salvo-conduto, o de número 365863. Validade da permissão de viagem: 3 de agosto de 1944 a 7 de agosto do mesmo ano: bem apertada! A caderneta possuía espaço para vários salvo-condutos, porém emitidos um a um. Quem assinava não era qualquer burocrata de segunda linha: era o próprio Delegado Regional de Polícia! O destino tinha que ser bem especificado: no caso, São Paulo, capital. O meio de transporte também: neste era a via férrea. Com certeza um trem da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. E também o motivo da viagem devia ser claramente declarado: neste, era “visita”. Receio de que italianos agentes do Duce Benito Mussolini quisessem aqui fazer espionagem?  Talvez mero burocratismo…

É chegada a hora de pormos um ponto final a esta narrativa. Digamos apenas que Mario Varolo faleceu em dezembro de 1945 em Campinas, em sua casa no bairro do Bonfim. Maria José, filha de Jandyra e José, tinha acabado de completar um ano e Jandyra estava grávida de mim, Maria Eugênia, nascida 6 meses depois. O velório foi nessa casa. Graças à lembrança de uma prima um pouco mais velha de que o velório se passara nessa casa, no Bonfim, foi possível localizar o distrito e daí o cartório que registrou o óbito e, enfim, ter acesso à certidão do passamento sem a qual as demais buscas para documentação necessária ao processo de reconhecimento da nacionalidade não teriam prosperado. Giuseppina teve vida bem mais longa, falecendo em dezembro de 1973, aos 94 anos e meio, na casa de José e Jandyra, onde moravam também Maria José, eu e Diógenes. Viveu conosco duas décadas, acolhida carinhosa e solidariamente por todos. Giuseppina foi a grande presença italiana marcante por tantas décadas para toda a família. Dela teria sido muito mais fácil reunir toda a documentação para o reconhecimento da cidadania italiana. Mas como nossa descendência é pelo lado materno (Jandyra), a legislação italiana não a contemplava, exigindo ascendência masculina. No início de nossa pesquisa foi muito difícil encontrar os dados de Mario Varolo. Devemos à senhora Silvia Stein, funcionária pública aposentada, residente em Indaiatuba, a pesquisa da cidade de nascimento de Mario Varolo: Adria, província de Rovigo. Pouca gente sabe, mas o fato é que os mórmons têm em seus arquivos os registros civis de todas ou quase todas pessoas do planeta. Nesses arquivos dessa instituição religiosa baseada em Salt Lake City, Estados Unidos, essa senhora encontrou as letrinhas que nos permitiram aceder ao que era nosso direito: a – d – r – i – a, Adria.

Este relato reproduz, na escala familiar, portanto num microcosmo, a dinâmica da vida das pessoas, das famílias, das gerações, dos trabalhos, das durezas e alegrias, das idas e vindas, dos passos e contrapassos, numa palavra, da história dos homens, para usar a expressão do inimitável historiador catalão Josep Fontana.

* Imagem de destaque: Nonno Mario Varolo, sua mulher Giuseppina, minha nonna, e minha mãe Jandyra, no dia do casamento desta em Pedreira, SP.

Bibliografia

GONÇALVES, Paulo Cesar. “Procuram-se braços para a lavoura: imigrantes e retirantes na economia cafeeira paulista no final dos Oitocentos”. São Paulo: Revista Brasileira de História, v. 34, n. 67, 2014.
CALSANI, Rodrigo de Andrade. O imigrante italiano nos corredores dos cafezais.  Franca, SP: UNESP, Dissertação de Mestrado, 2010, p. 17-18.
Museu da Imigração, Livro 053, pág. 216, família 65470; Museu da Imigração, Livro 058, pág. 111, família 41120; Museu da Imigração/ pesquisa, registro de matrícula Livro 078, pág. 144, família 15090; Museu da Imigração: Livro 079, página 025, família 02590. Em Campinas sempre se conheceu a filha do Barão de Itapura como Dona Isolette Aranha.

7 comentários

  1. Parabéns! Artigo bem lúcido e atraente.Embora seja um relato de sua família,quem é descendente de italiano,como eu,( meu avô era de Roma) saboreia ,com gosto,seu relato.

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  2. Parabéns Maria Eugênia, muito bem escrito. Meus avoós também eram de Rovigo, vieram para o Brasil, casaram e tiveram quinze filhos. Daí nasceu a familia Conforti no Brasil.

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  3. Meu trisavô se chamava Natale Varolo, e minha bisavó (filha dele) se chamava Angela Varolo, eles chegaram ao Brasil em 1891 e ela tinha apenas 3 anos de idade, ele veio com sua familia toda, esposa e filhas.

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