Between the empire days and the present: political profiles, elections and electoral practices in Brazil.
Por Beatriz Piva Momesso – historiadora, professora da Universidade Federal Fluminense. Titular da Cadeira 12 do IHGG Campinas.
Pensar a história das eleições brasileiras, tema tão atual debatido nos espaços públicos e privados, significa, de modo corriqueiro, mas inevitável, associá-la à corrupção política tendo em vista atuações institucionais.
Certa cultura política já vulgarizada aponta para o uso de procedimentos de caráter moral duvidoso como algo arraigado nas estruturas administrativas mais profundas do Brasil, desde a sua fundação. O clássico exemplo do pedido de emprego para o genro que fez por escrito Pero Vaz de Caminha na parte final da carta endereçada ao rei de Portugal, por ocasião do descobrimento do nosso país, figura entre os casos de nepotismo mais comentados da nossa história, desde há 500 anos. São fatos anedóticos, mas que ceifam qualquer esperança de busca de procedimentos lícitos e honestos no campo político e que corroboram a hipótese de que os representantes do povo se corromperam em consequência de sua inserção em estruturas desde sempre viciadas e que não lhes oferecem alternativas. Trata-se de uma visão pessimista e estrutural bastante difundida.
Discussões recentes, mais aprofundadas, de caráter, sobretudo jurídico discorrem sobre sistemas legais e administrativos mais ou menos eficientes para combater a prática do desvio de dinheiro público e também debatem quais seriam os métodos eleitorais capazes de proporcionar uma representação política adequada, de modo a obter perfis parlamentares de estadistas conscientes de sua tarefa. Um exemplo é o livro de Manoel Rodrigues Ferreira intitulado: A Evolução do Sistema Eleitoral Brasileiro. Um dos méritos dessa obra é levantar toda a legislação eleitoral brasileira numa perspectiva histórica e divulgar as experiências legislativas já vividas pelo Brasil. Ao oferecer a oportunidade de comparação entre as eleições no Império e na República a obra sugere a possibilidade de diferenciar um momento e outro. Eis que emergem algumas perguntas: No passado era diferente? As eleições eram menos fraudulentas? Os políticos eram mais cultos ou comprometidos? Eram comprometidos como uma causa que os levava a atuar abertamente em prol desta, tal como o fez Joaquim Nabuco, abolicionista e monarquista?
O presente artigo pretende analisar, de modo comparativo, os perfis e os procedimentos éticos dos eleitos para ocupar das cadeiras do senado e da câmara ao longo da História do Brasil, bem como as características gerais dos sistemas políticos do Império e da República. Nesse sentido, pretende pensar, ainda que brevemente, a história política do Brasil e vislumbrar possibilidades para o enorme problema da corrupção política.
Em primeiro lugar, é relevante a abordagem do perfil político dos senadores e, sobretudo, dos deputados no auge do Império, entre 1840 e 1870. O historiador José Murilo de Carvalho observou que a maioria dos parlamentares no Segundo Reinado eram bacharéis formados em direito que se convertiam em burocratas. Ser parlamentar ou trabalhar em repartições públicas era a principal e, por vezes, única opção desses indivíduos. Então era incomum que houvesse demanda que justificasse a abertura de escritórios de advocacia próprios. Ademais, vale lembrar que o direito figurava entre os cursos mais antigos implantados no Brasil, sendo a Faculdade do Recife e a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, ambas fundadas por decreto imperial em 11 de agosto de 1827. Nessas instituições estudaram importantes personalidades brasileiras: Eusébio de Queirós, Ruy Barbosa, o Barão de Rio Branco, Tobias Barreto, José Pimenta Bueno. Num país de incultos onde menos de 15% da população era alfabetizada, as ilustres faculdades destinavam-se a formar governantes e administradores públicos, fundamentais para a consolidação de um país independente.
À época, muitos desses deputados e senadores também escreviam em periódicos. Quando atuavam como editores era mais explícita, todavia, a defesa de certas propostas políticas em detrimento de outras. O limite entre ser político e jornalista era bastante tênue. Os jornais comprometiam-se largamente com longas e profícuas discussões a respeito de temas como abolição, programas partidários, eleições, etc. A linha editorial marcava a pauta das ideias a serem debatidas. José de Alencar, por exemplo, de talha conservadora, atuou no Correio Mercantil: já Octaviano de Almeida Rosa foi editor do jornal centro Liberal A Reforma, a partir de 1868.
Os discursos parlamentares e os artigos por eles publicados em periódicos eram carregados de intencionalidade e se apropriavam de pensadores e personalidades europeias da época, cujos livros eram difundidos entre aqueles que liam. Os utilitaristas Stuart Mill e Jeremy Bentham eram muito citados e inspiraram a formulação do sistema prisional brasileiro concebido a partir de grades que permitiam o contato visual e a vigilância. John Macualay um whig (liberal britânico) era o autor indicado para pensar o fim o gradativo e planejado da escravidão. Estilos discursivos inspirados no mundo greco-romano tendo como referência Cícero, Sólon e imagens da mitologia grega mesclavam-se às linguagens que evocavam a Sagrada Escritura.
No que tange ao perfil dos políticos eleitos em 2014, numa pesquisa no site de consultoria do parlamento, foi possível observar que a grande maioria dos deputados federais possui curso superior (80%). Dos 513 deputados somente 4 não terminaram o ensino fundamental, o equivalente a um 1% do total.
Diferentemente da época imperial a profissão predominante entre os eleitos é a atividade empresarial: 140 deles se declararam empresários, sendo que muitos especificaram trabalhar com agronegócio. Em segundo lugar, totalizando 120, estão aos advogados e bacharéis e em terceiro empatados aparecem professores (58) e médicos e dentistas (58). Por sua vez radialistas, jornalistas e apresentadores de televisão, se somados, contam 37.
Abaixo, as informações sobre a profissão dos parlamentares em atividade são apresentadas graficamente:
Gráfico 1-Formação Profissional e Ocupação dos Deputados Brasileiros-2015
Fonte: Parlamento Consultoria. Disponível em: http://parlamento consultoria.com.br/site/wp-content/uploads/2014/03/PROFISS%C3%95ES-DOS-DEPUTADOS-FEDERAIS_2015.pdf. Acesso em: 30 abr. 2017.
Apesar da inexistência de dados mais específicos a respeito das leituras e livros frequentados pelos atuais parlamentares brasileiros, grosso modo, de acordo com as informações acima apresentadas, observa-se que o grau de escolaridade, não tem relação direta com o péssimo desempenho de parlamentares no quesito ético. O diploma universitário não é suficiente para garantir o desempenho satisfatório de um senador ou deputado. È bem verdade, que por vezes, surgem dúvidas sobre a cultura dos parlamentares. Nos últimos meses, causou indignação a postura do deputado estadual no Rio de Janeiro, que, na tentativa de ilustrar seu discurso, trocou o nome do poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht por “Bertoldo Brecha” personagem de um programa humorístico da TV. O cerne da questão, entretanto, parece ser a “intenção” entendida como o motivo que leva um político a atuar e não a “instrução”, no sentido de capacidade intelectual e grau de ilustração. O problema que hoje enfrentamos, divulgado por operações como a Lava Jato, revela-se, acima de tudo, como de ordem ética. Os mecanismos criados para a prática de desvio de dinheiro mostraram-se bastante engenhosos e inteligentes. O envolvimento da grande maioria de deputados, por exemplo, com o agronegócio pode levantar suspeitas sobre a defesa de interesses particulares pela via política e demonstra uma grande capacidade de raciocínio e planejamento. Ainda que seja prudente evitar generalizações, a prisão de Jorge Picciani, presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), mesmo em âmbito estadual, evidenciou o desvio de recursos públicos e o investimento do montante nas fazendas pecuaristas da família no sul fluminense.
Sendo assim, poderia ser pertinente pensar se o problema da corrupção se funda na adoção do sistema político. Seria a monarquia constitucional, como sistema de governo vigente no Brasil no passado imperial, o modelo ideal para eleições não fraudulentas, moralizadas, representativas e com resultados que, de fato, expressassem os anseios dos eleitores?
Essa pergunta não deve ser respondida ligeiramente. O tema do aperfeiçoamento das instituições, sem dúvida, esteve presente durante o período Imperial, já que cinco diferentes sistemas eleitorais foram utilizados para as eleições para a câmara dos deputados entre 1824 e 1889. A leitura das Atas da Câmara e do Senado denota o intenso debate parlamentar que antecedeu às reformas e implantações de tais sistemas.
Em primeiro lugar, nota-se que todo o sistema eleitoral do Império era fundado sob a obtenção de renda. Na maior parte do período, o voto era indireto e vigorou o sistema de duplo grau do corpo eleitoral: havia os votantes e os eleitores.
Os votantes eram os qualificados para participar das eleições primárias. Responsáveis por escolher os eleitores, geralmente eram chefes locais, pessoas influentes nas câmaras ou municípios. Esses homens tentavam “fazer” seus eleitores, isto é, transformar os candidatos preferidos nas primárias em eleitores. Feitos os eleitores o resultado nas eleições secundárias era previsível.
Os eleitores atuavam durante as eleições secundárias e escolhiam os deputados gerais, senadores e deputados provinciais.
Até 1846 era necessária a renda de 100 mil réis para ser votante e 200 mil réis para ser eleitor, valores que se transformaram, em 1846, em 200 mil e 400 mil réis, respectivamente. Os libertos que se adequassem ao perfil censitário poderiam votar somente nas eleições de primeiro grau.
O perfil censitário, aliás, extremamente elitista, predominou em todo o período imperial. Àquela altura, praticamente era senso comum no meio político que votantes e eleitores deveriam dispor dos atributos financeiros. No entanto uma questão que se apresentava à época era as vantagens e desvantagens das “câmaras unânimes”.
Era o Imperador quem escolhia o chefe do gabinete de ministros, que por sua vez designava os demais ministros. Sendo assim havia uma predominância de gabinetes dos dois partidos existentes até fins da década de 1860: o Partido Conservador e o Partido Liberal. Dependendo da filiação partidária do chefe do gabinete predominava uma ou outra tendência política no poder executivo. Os ministros governavam em acordo com o senado e a câmara de deputados, eleitos indiretamente. Ocorre, que, no caso de uma câmara predominantemente liberal e um gabinete conservador, ou vice-versa, o sistema “emperrava”. Nessas circunstâncias, a câmara geralmente barrava os atos do executivo e este último não sancionava decisões votadas na câmara. Sendo assim, o Imperador investido do Poder Moderador via-se ou obrigado a dissolver a câmara e convocar novas eleições, o que era extremamente impopular; ou despedir o gabinete e formar outro, o que denotava instabilidade política.
Na década de 1850, os liberais reclamavam da predominância de deputados de orientação conservadora nas Câmaras, o que dificultava a ação de seus gabinetes. Na legislatura de 1849, 99% dos deputados eram conservadores, enquanto que na seguinte (1853-1856) todos os deputados eram conservadores.
Até 1855, eram eleitos os mais votados até o preenchimento de todas as vagas de uma paróquia, tratava-se do sistema de maioria simples, que então beneficiava os conservadores com grande influência nas capitais de províncias.
Um novo sistema eleitoral foi introduzido no país naquele ano, por iniciativa do Marquês de Paraná e com grande incentivo de Pedro II como forma de aproximar os liberais. Tratava-se do voto distrital. As províncias foram divididas em vários distritos ou círculos eleitorais. Cada distrito elegia um candidato. Dessa forma, a votação não se concentraria na capital da província. Haveria um enfraquecimento das elites e provinciais quanto ao manejo do sistema e abriria uma linha direta entre as chefias locais e o governo.
Muitos políticos antigos, naquela eleição, reclamaram do surgimento das “notabilidades de aldeia” deputados eleitos desconhecidos e não pertencentes a famílias influentes na capital das províncias. Em 1855, elegeram-se, sobretudo, padres e médicos. Sendo assim, a lei foi alterada em 1860 com o intuito de restringir a influência de líderes de locais afastados da capital da província. Pela nova legislação cada distrito elegia 3 deputados ao invés de 1. Dessa forma seria possível a formação de chapas e, consequentemente, predominância partidária, bem como a ascensão de políticos tradicionais das províncias. Apesar do apoio dos conservadores que superestimaram seu poder eleitoral, como resultado do circulo de 3 elegeram-se muitos liberais.
As duas leis dos círculos, apesar de aprovadas e exaustivamente debatidas apresentaram muitos problemas no que tange a sua implantação. Em primeiro lugar, quase não havia dados estatísticos sobre a população do Império a fim de se proceder a uma justa divisão dos distritos. Autoridades locais da província e dos municípios propunham diferentes divisões dos círculos, como lhes fosse mais conveniente para garantir representação. Uma vez que era o ministro da justiça quem delimitava geograficamente os círculos mediante decreto não é difícil supor que havia muita barganha nesse processo. Em um bilhete endereçado ao ministro da justiça Nabuco de Araújo, o chefe do Gabinete, o Marquês de Paraná, pede uma criteriosa divisão dos círculos, pois disso “dependeria a eficácia das eleições”. Ademais, eram os delegados e subdelegados das localidades nomeados pelo governo da corte quem fiscalizavam e mantinham a ordem nas eleições. A experiência dos círculos demonstra que mesmo no âmbito legal do Império foi possível alguma barganha ou operação que poderia ser suspeitosa.
O período republicano extinguiu a exigência de renda mínima para que os brasileiros detivessem o direito de votar, o que representou um avanço para o processo político brasileiro, Além disso, as eleições eram diretas desde 1881. Graças ao Código Eleitoral de 1932, as mulheres conquistaram o poder de voto e, pela Emenda Constitucional n. 25 de 1985, foi concedido, pela primeira vez, na República o voto aos analfabetos.
No entanto, as fraudes continuaram recorrentes e se organizaram, ademais, com certa sofisticação. Inúmeros estudos citam a presença dos “fósforos”- eleitores que votavam mais de uma vez- e de processos de falsificação eleitoral como “o bico de pena” que consistia na adulteração das atas feitas pela mesa eleitoral, que também apurava os votos; prática comum durante a Primeira República (1889-1930).
Os interesses sempre estiveram presentes. Isso pode ser observado não só na corte ou na província, mas também no caso dos municípios paulistas. Em petição publicada na Gazeta de Campinas e dirigida à Assembleia Provincial em 1875, os moradores de Campinas e Amparo reclamam do descaso para com a Ponte do Rio Atibaia que ligava então os dois municípios e encontrava-se destruída, tornando praticamente impossível a passagem. É bastante expressiva e irônica a queixa e aponta para certo espírito eleitoral que já existia naquela época: “Pena é não estarmos com as eleições á porta, porque nesta quadra tudo nos corria bem; já tínhamos a certeza de os candidatos com sua influência empenharem-se (…)”
As eleições de 2000 constituíram as primeiras em que todos os eleitores votaram na urna eletrônica, fato amplamente aludido pelo governo como evidência de progresso e desenvolvimento. Recentemente, discutiu-se a idoneidade do pleito eleitoral realizado através desse mecanismo. Os jornais de três anos atrás recolhem vários relatos de brasileiros que se dirigiriam a sua seção eleitoral e, surpresos, descobriram que alguém já havia votado em seu lugar. Em 2014, o presidente da Corte, Dias Tóffoli, anunciou que não abriria edital para testes nas urnas eletrônicas das eleições daquele ano. Exatamente naquela ocasião o CMind- Comitê Multidisciplinar Independente dos especialistas em Tecnologia- descobriu uma brecha no sistema: a existência de um software, O Inserator CPT, que possibilita a instalação de programas fraudados nas urnas. As denúncias de irregularidades foram enviadas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em petição que foi arquivada pela Secretaria de Informática. A advogada que representou o CMind denunciou, ademais, o desaparecimento de quatro páginas do documento.
Retomando a questão inicial, nota-se que no Brasil do Império e também da República em suas várias fases, a prática de atos corruptos não se explica pelo nível de formação escolar daqueles que se constituíram como autoridade política, como já foi explicitado. Embora a formação intelectual dos políticos do Império pareça, a primeira vista ilustrada, o problema do mau uso da representatividade e a manipulação de recursos públicos incide em quase todos momentos da nossa história na questão da formação ética. Até mesmo sérias tentativas de organização das eleições plasmadas em leis, em certas ocasiões, foram subvertidas em práticas ilícitas visando a satisfação de interesses pessoais ou sectários. As más escolhas dos sujeitos, que não tem em conta o “bem comum”, conforme a acepção da Política de Platão, desencadeiam a corrupção sistêmica. A atenção ao individual em detrimento do coletivo e do agente ao invés do sistema constituiu uma chave explicativa da História das Eleições e da corrupção política do nosso país e nos convida à inversão desse quadro através da formação ética precoce, uma ética que por sua vez faça reluzir o valor do bem comum.
Referências
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
FERREIRA, Manoel Rodrigues. A evolução do sistema eleitoral brasileiro. 2ª ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2001.
GAZETA DE CAMPINAS. Campinas. 1875. Disponível em: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 30 nov. 2017.
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO (IHGB). Correspondência pessoal ativa e passiva do Senador Nabuco. Rio de Janeiro, 1850-1876.
JORNAL GGN. O TSE e a descoberta do programa de fraude nas urnas eletrônicas. 24 out.2014. Disponível em: Acesso em: 02 dez. 2017.
NICOLAU, Jairo. História do voto no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2004.