Campinas bombing in the Paulista War (1932).
Por Luiz Roberto Saviani Rey – jornalista, professor. Titular da Cadeira 14 do IHGG Campinas.
A manhã do domingo, tranquila e repleta de sonolência, fora rompida e violada pelo ronco assustador e em ondas sonoras ininterruptas e inquietantes, entoadas pelo avião Vermelhinho, sobrevoando e baixando dos céus rumo à Estação Ferroviária da Paulista. Era o terceiro dia consecutivo de sobrevoos de aviões federais sobre Campinas, bem no momento em que o trem da Revolução começara a ser abastecido com as poucas armas que restaram e suprimentos alimentares, destinados, já inutilmente, à tropa remanescente estacionada nas cercanias de Itapira e de Mogi-Mirim, e que, após a decisiva Batalha de Eleutério, recuara e principiara a capitulação, entre o final de agosto e as primeiras semanas de setembro de 1932.
Na Estação da Cia. Paulista, os soldados incumbidos do carregamento foram alertados pela sirene disparada do centro da cidade, desde a sala do diretor do jornal Correio Popular – a qual, em tempos comuns, era utilizada para assinalar o meio-dia, para dividir a jornada de trabalho no comércio local. Naqueles dias, a sirene era o alarme, o sinal de alerta, o aviso de que o inimigo se aproximava; uma advertência eletrizante contra os catastróficos sobrevoos dos Vermelhinhos. O comando revolucionário em Campinas, alojado em uma das salas da Estação, reforçou o alerta e todos os presentes à plataforma àquela hora correram se ocultar e se proteger em pontos abrigados, pois era temido o potencial destruidor do aparelho aéreo, a força esmagadora de Getúlio Vargas.
Campinas, em instantes, sentiria mais intensamente e de forma inesquecível e dolorosa, os efeitos desse fenômeno surpreendente da Revolução de 32: o emprego de aviões e o bombardeio incisivo que se desenhava para esmagar a Guerra Paulista em sua vanguarda.
Era 18 de setembro de 1932. O inverno principiara sua dissipação, prenunciando a primavera. Mas as manhãs ainda eram frias na Campinas onde a Revolução Constitucionalista montara um dos seus principais fronts fora dos círculos da Capital Paulista.
Do alto dos céus de Campinas, o piloto inimigo parecia ver um retrato em preto e branco do cenário dominical. Os cidadãos deixavam as missas nos templos centrais. As almas estavam leves e os espíritos regozijavam após as orações, a homilia e a confissão, os sacramentos que aliviavam a mente e proporcionavam a sensação de estar mais próximo da divindade.
Eram 11 horas quando o Vermelhinho apontou nos céus e iniciou seu traçado de reconhecimento e estudo do território. Percebia-se, por esse mapeamento, o noviciado do piloto, pelo longo sobrevoo e a forma como rodopiou nos céus e se afastou para, então, arremeter o aparelho próximo ao solo sagrado da cidade.
Partiam as pessoas, em grupos e em famílias – prestes a se envolverem em uma catastrófica desventura – em caminhadas ou passeios em bondes e trens para visitas a familiares e amigos, ou seguiam na busca de restaurantes, tabernas e pensões para a refeição domingueira e também de locais de piqueniques e descanso. O movimento mais intenso fluía na direção do Bosque dos Jequitibás, a área de lazer contígua ao centro da cidade, com árvores refrescantes e caminhos sob elas apagados de sol.
Eram 11h20 da manhã e o pânico tomou conta de Campinas, quebrou sua rotina e tranquilidade e produziu uma correria desbaratada das pessoas em busca de abrigo. Um frêmito e a expectativa! Já haviam sentido a força da aviação federal em dias anteriores, mas de forma tênue, com sobrevoos de reconhecimento. Ignoravam o plano malévolo do governo getulista. Aquele sobrevoo e o bombardeio que o Vermelhinho prenunciava sobre o casario da cidade naquela manhã não eram de uma operação comum.
O que almejavam os Provisórios, certos da tibieza dos revolucionários àquela altura de setembro? Minar e destruir seus pontos de concentração de homens, suprimentos, armas e de transportes, capazes de revigorar o inimigo quase abatido na frente de batalha. Naqueles anos, Campinas era o principal entroncamento ferroviário e de vias terrenas à Capital e ao interior, oferecendo estrategicamente, do ponto de vista militar, um bastião significativo de resistência e de reorganização da luta armada.
Os relógios marcavam invariavelmente 11h30 naquela manhã, quando um inusitado e amedrontador ruído despencou dos céus, ameaçador, em direção à área da Estação Ferroviária da Paulista, prendendo a respiração da população campineira, impressionada com a agilidade do avião, sem, contudo, compreender sua força brutal, seu potencial de morte! Não houve tempo para nada! Em segundos, dezenas de pessoas, assustadas, o coração aos saltos, principiaram a correr, desnorteadas, inseguras, aparvalhadas, certas de que algo destruidor desabaria sobre suas cabeças.
Em meio ao pânico desencadeado, a atenção e a curiosidade de um menino fora captada pelo troar da máquina logo acima, o que o atraiu para a calçada. Momentos antes, ele se sentara em uma mureta para trocar os sapatos de escoteiro pelo calçado comum. Estava em um corredor próximo ao hall da Estação. Acabara de entregar correspondências ao comando militar.
Atraído pela gritaria e pelo caos, o menino correu para fora da Estação, ansioso por vislumbrar a grande máquina voadora, ainda novidade em Campinas, naquele setembro de 1932. Seu nome era Aldo Chioratto. Sua imagem, rosto sereno e introspectivo, ficaria marcada na história da cidade para sempre! Tinha nove anos de idade! Era filho do tintureiro João Chioratto e de Ada Chioratto.
Sua mãe, em um gesto desesperado, ainda tentou retê-lo em área protegida, mas Aldo, escoteiro, lépido, serviçal, sempre alerta, não lhe deu chances e, veloz, colocou-se no centro da confusão que se formara, do pânico que acometera as centenas de pessoas no interior da Estação, e em sua praça frontal e, pelas ruas adjacentes. Os gritos de Ada foram abafados pelo vozerio e pela confusão fora da Gare, e ela viu o filho desgarrado, célere, curioso, em busca da visão do intrigante Vermelhinho fazendo acrobacias para melhor calibrar seus alvos e direcionar os disparos.
Soldados corriam pelas ruas de armas em punho, fuzis e revólveres, buscando atingir a fuselagem da aeronave e derrubá-la, abatê-la, em uma ação heroica, na tentativa de evitar o bombardeio que pressentiam.
Repentinamente, ouve-se uma explosão. Outra. E mais uma. Três violentos disparos do Vermelhinho. Sons alucinantes de guerra. Aquela área da cidade treme e tremem as pessoas espantadas com o surpreendente ato e o poderio inimigo, com a força e a violência que jamais julgaram ser possível. O desrespeito humano, para com a população civil.
As bombas caem em intervalos de minutos, levantam cortinas de fumaça escura, produzem estilhaços que se espalham em círculos, como um imenso vaso de cristal se arrebentando ao solo. Uma delas, com destino certeiro! Fatalmente certeiro!
Segundos depois do impacto, as pessoas, ainda se recompondo do susto, avistam feridos deitados ao solo da praça e da ampla avenida que dela se prolonga rumo à região Norte. O chão coberto de sangue! São vários, são muitos! Muitos que se contorciam. Estão ali, nas pedras frias, deitados. Gemem, lamuriam, pedem por socorro! O quadro que se contorna é de sangue, de dor e de protestos contra os ditatoriais.
Entre as pessoas espalhadas na avenida em frente à Estação, o corpo de um garoto, caído, sangrando. Morto! Era Aldo Chioratto! O menino escoteiro, o lépido e querido menino escoteiro. O menino herói da Guerra Paulista! Ferido, ali, mortalmente por estilhaços que lhe atingiram a região do estômago. Não se contorcia, estava inerte!
Enquanto o Vermelhinho arremetia para fora dos círculos urbanos, o corpo do jovem Aldo foi levado por homens e mulheres ao Mercadinho instalado na Estação. Fora deitado sobre uma mesa de madeira tosca, arrastada às pressas por comerciantes condoídos com sua sorte. O rosto contraído, os olhos, antes vivos, fechados. Morto! No caos circunstante que se estabelecera, após as cenas de destruição e de morte, uma mulher gritava em desespero.
A mulher trazia nas mãos um cesto de frutas e de legumes que acabara de comprar no mercadinho, para alimentar os filhos que chegariam da missa e dos passeios matinais. Deitou o cesto ao solo e tomou nos braços aquele coitadinho, ali, inerte, ferido no abdome, jorrando sangue. Morto! Amparou-lhe o corpo imóvel até que Ada Chioratto, em desespero, percorrendo corredores e calçadas, reencontrou-se, finalmente, com o filho extraviado e pôde abraçá-lo, segurar sua cabeça vertendo lágrimas sobre seu rosto sereno, o rosto cândido e paralisado do menino herói!
Está morto! Está morto! Gritou Ada.
Os campineiros estavam desconsolados, entristecidos e em pânico. O elo que os unia, o selo, o tecido social que fora alinhavado ponto a ponto, ao longo de décadas, a união das pessoas, o bem-querer e as amizades estavam agora suspensos e cada um cuidava de si próprio, isoladamente, procurando superar suas dores, achar entes-queridos entre os feridos, encontrar forças para prestar solidariedade e socorro aos atingidos pelo bombardeio cruel.
Morreu um menino! Morreu um menino! Gritavam as pessoas, assombradas, em sucessivas vozes que formaram um coro em forma de corredor e levaram a notícia adiante, que a fizeram escoar pelas ruas, pelas quadras, quadra a quadra, seguindo a avenida Campos Salles, até chegar a todo canto, e à Prefeitura, por fim, onde o prefeito Orosimbo Maia acompanhava a missão aérea transmitindo, nervosamente, informações aos comandantes da Revolução na Capital.
A cidade assolada pela pior arma que um homem poderia empregar em uma guerra, ainda mais uma guerra entre confrades, irmãos, talvez não do mesmo sangue, mas de uma identidade nacional! Uma arma poderosa contra a qual Campinas não possuía defesa: os aviões! Os aparelhos desenvolvidos por um brasileiro, que deveriam servir apenas de meio de transportes, de integração entre homens e distâncias. A aviação, invenção brasileira tão celebrada, a surpresa desagradável da Revolução. O avião, a arma terrível na Guerra Paulista!
Além de Aldo Chioratto, havia outras 27 pessoas atingidas pelos petardos, feridas, e que permaneciam imobilizadas sobre as calçadas e no leito da avenida. Um enfermeiro acudia o quanto conseguia dar conta dos demais feridos, enquanto um policial fazia o inventário dos atingidos pelo bombardeio, pelos muitos estilhaços distribuídos em toda área no entorno da Estação da Cia Paulista.
No histórico dos acontecimentos, apurou-se que a primeira bomba caíra no teto de zinco da Estação Ferroviária da Paulista, furando o telhado e explodindo em uma das vigas de ferro que o suportavam, o que diminuíra seu impacto e causara apenas pequena perda material. A segunda, que caiu exatamente em frente à Estação, entre o ponto de automóveis, o posto de telégrafo e a sessão de despacho, foi a causadora da morte do jovem Aldo, e dos ferimentos graves dos demais. Outra bomba atingiu as proximidades da Companhia MacHardy, derrubando um pilar do edifício. A última caiu sobre o prédio N° 164, da rua Visconde do Rio Branco, residência de Athayde dos Santos, que ficou ferido levemente na cabeça.
Naquela tarde, outros dois Vermelhinhos sobrevoaram a cidade ainda sob o impacto do bombardeio da manhã, tentando salvar seus feridos e prantear o menino morto. Dispararam nova carga de explosivos e, desta vez, atingiram, em cheio, a Estação da Cia Paulista, causando danos de grande monta e não perdoando alvos civis nas imediações.
Pessoas que julgavam estar protegidas no interior da residência, mas que foram atacadas, como se inimigas portentosas de um poder ditatorial e impiedoso. Nas proximidades da Estação, duas quadras à sua frente, na rua Visconde do Rio Branco, onde funcionava uma escola alemã, uma bomba caiu no quintal de uma casa.
A estratégia dos bombardeios não se restringiu àquele domingo. Nos dias subsequentes, e pelo período de dez dias consecutivos, Campinas sofreu com os sobrevoos e o disparo de bombas dos Vermelhinhos. Ao cabo da devastação, a geografia da cidade pujante alterara-se substancialmente nas cercanias da Estação e em outros locais.
Pelas ruas, avenidas, praças e jardins, escombros. Casas particulares, prédios públicos, escolas, desfeitos! Telhados arrancados, telhas descaídas e amontoadas, ferros retorcidos, paredes demolidas, pedras e tijolos arremessados nas calçadas e nas ruas, móveis soterrados, revolvidos, formando um quadro desolador e triste.
Paredes e pedras, de taipa ou de tijolos imperiais, os azulejos portugueses e as decorações em gesso, antes erigidos com orgulho e galhardia, numa terra de riquezas, jaziam agora ao chão chamuscado de pólvora e de restos de granadas triturados e amalgamados no cenário de destruição.
A cidade, que desde a poeira do período colonial erigira-se cuidadosamente metro a metro, ponto a ponto, palmo a palmo – ingressando pujante, economicamente, na Era Imperial -, que se mostrava viva e progressista, que se emancipara elegante e em grande estilo na transição para a República, com seus costumes afrancesados, copiados da vida social da Corte, e que rumava para uma condição de metrópole, de centro regional, possuía agora cavidades imensas em suas estruturas e chão, marcas profundas do bombardeio em seu mapa físico. Pontos de pura argamassa fundida a restos de explosivos. Rasgos e cicatrizes humilhantes que a depreciavam aos olhos dos Provisórios malfeitores.
A bravura dos paulistas começara a capitular naquele cenário!
Campinas cedera sem poder se defender. Seus valentes voluntários encontravam-se também destroçados pelas forças federais e mineiras na região de Eleutério, Itapira e Mogi-Mirim, reduzidas a pó, e em franco recuo. A Terra de Carlos Gomes, a cidade esculpida ao cinzel magnífico de Ramos de Azevedo, possuía agora ferimentos graves, buracos impressionantes em sua obra de arte!
A cidade permaneceu sob a intensa vigília e sob o comando dos Provisórios, o caminho da reconstrução e da paz ainda seria longo, mas Campinas superaria essa etapa de bombardeios, mortes e transtornos, a qual permaneceria na forma de uma cicatriz irremovível, e retomaria seu caminho de crescimento e pujança econômica. Mas a memória daqueles dias permaneceu como um véu de tristeza e de saudade, e também de medo. Um sentimento de inferioridade que se abatera sobre uma população livre e altiva.
No dia 9 de Julho de 1935, a cidade ainda sob os efeitos da derrota, mas entendendo a relevância da luta de seus voluntários, inaugurou solenemente o Mausoléu dos campineiros mortos na Revolução Constitucionalista de 1932, junto ao portão de entrada do Cemitério da Saudade.
Um monumento panteão a eternizar a memória dos soldados tombados em campanha. A cidade ganhara, por iniciativa e participação de sua sociedade, um ícone um símbolo, uma chama eterna na Praça Voluntários de 32, a lembrá-la do poder ditatorial contra o qual lutaram os heróis. Junto a eles o menor, o mais significativo de todos: o corpo do escoteiro Aldo Chiorato, morto aos 9 anos. O menino herói da Guerra Paulista!
Os rumores de guerra e a guerra em si passaram, os dias correram, mas a cidade não estacionou no tempo. Mais uma vez, como fizera em relação à febre amarela, a Fênix recuperou seu fôlego, abriu suas asas para um voo mais alto e futurâmico. Seu destino de centro regional, de liderança metropolitana, de cidade rica e de polo econômico relevante cumpriu-se plenamente. Tinha o destino de se tornar cidade livre, independente, autônoma, capaz de se tornar o polo de atração no Brasil dos avanços científicos e tecnológicos. Uma cidade de primeiro mundo! Campinas!
Mais uma história de Campinas que o Saviani nos proporciona.
CurtirCurtir