Emilio Ribas, the man who saved the city (Campinas, SP, Brazil).
Por Rubem Costa – educador, advogado. Sócio emérito do IHGG Campinas.
No preâmbulo de Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis divaga indeciso sobre a melhor forma de iniciar a narrativa. Se pelo nascimento ou pela morte do personagem, posto que, diante da realidade plena e singela da morte, o falante era um defunto dissertando sobre si mesmo. Optou pelo avesso. Isto é, adotou o método de Moisés, que também contando a existência, inverteu os extremos, pondo o começo da fala no cabo e não no introito da dissertação, no que acertou, visto que o relevante não é o local onde o ser vem ao mundo, mero acidente na geografia da existência, mas o seu itinerário de vida, a trajetória em favor do coletivo.
Bem que a máxima latina já dizia Absens non dicitur reversurus – Não se diz ausente quem vai voltar. E foi assim que o velho Machado pôs o indeciso Brás Cubas de regresso a falar do próprio óbito, olhando a existência de trás para diante, como fez Napoleão no Egito, contemplando do topo da pirâmide o desenrolar dos séculos.
Foi essa lembrança que me assomou à mente quando li notícia recente sobre a ameaça de recrudescimento de uma praga que, devastando o município, andou por aqui nos fins do século XIX – a febre amarela. E aí, parodiando Machado, recordei-me da figura imensa de um médico – falecido em 1925 – a quem Campinas, assolada pela peste, devera sua ressurreição trinta anos antes, no fim do século XIX. Emilio Marcondes Ribas. Paradoxalmente, naquele ano, o homem que salvara Campinas estava à morte.
Nesse transe comovente, faz mais de oitenta anos, em um dia de dezembro, a emoção estampou-se na face de meus pais que, sobreviventes por milagre do triste centênio anterior, respiravam então numa Campinas ressurreta graças ao desprendimento daquele ser voltado inteiramente para o sentido humano da vida. Com respeito e devoção, falavam dele como pioneiro da medicina preventiva e curativa numa época marcada pela péssima condição de saúde e educação do povo em todo o país. Formado pela Faculdade de medicina do Rio de Janeiro (1887), ao reverso do que acontecia em sua época com os médicos que preferiam os grandes centros, lançou-se desde logo como clínico no interior de São Paulo para atendimento da gente humilde desprovida de recursos. Pesquisando sobre a febre amarela, chegou à conclusão que o mal se expandia através do Aedes Aegypti, e para provar, ofereceu-se ao holocausto, deixando-se picar pelo mosquito. Adquiriu a doença, comprovando a teoria.
Para ilustrar o sentido messiânico dessa existência dedicada inteiramente ao bem comum, conta-se que Ribas, já muito doente, quase ao óbito no leito do hospital, fora ouvido a dialogar com a mulher, recordando com ternura um momento feliz:
– Você se lembra que data é esta, Mariquinha?Faz 36 anos que nos casamos.
E ela pilheriando para animá-lo:
– 36 anos não, só 16, o resto você gastou no serviço público.
Era 1925. Na frase jocosa, dita para esconder as lágrimas, Mariquinha fazia uma síntese daquela vida referta de desprendimento e humanidade que ao longo do tempo capitalizara sonhos e sacrifícios em favor do bem público. Naquele momento de perempção se escrevia o final do grande discurso que também se inscreveu, como um ato de fé, no debelo das doenças tropicais que dizimavam populações indefesas. E dias após o diálogo, quando Emílio Ribas se despedia da forma corpórea, os campineiros que vindo dos anos anteriores haviam saltado para o século XX sob o signo da ressurreição, dobraram-se genuflexo na pira do agradecimento. Choraram. Meu pai quedou-se mudo e minha mãe orou. Eu que na inocência dos seis anos nada sabia, guardo ainda estupefato a imagem de uma cidade comovida.
Algumas décadas antes, num século XIX de conhecimentos médicos precários e higienização ausente, Campinas despontava no cenário político, econômico, social e cultural como uma das mais promissoras urbes da nação. Fazendeiros e negociantes se organizavam na consecução de serviços públicos, dotando a cidade de inúmeros melhoramentos: iluminação a gás (1875), linhas de bonde a tração animal (1879), linhas telefônicas (1884) e serviço de água e esgoto. Paralelamente, fundavam-se duas estradas de ferro que se transformaram no maior centro de comunicação da província: a Companhia Paulista de Vias Férreas e Fluviais, posteriormente transmutada em Companhia Paulista de Estradas de Ferro e a Companhia Mogiana de Estradas de Ferro. Em 1874, fora criado o Ginásio Culto à Ciência num momento em que já existia na cidade outro célebre estabelecimento, Internacional, mantido por congregação protestante. E no mesmo ano, representando o Clube da Lavoura, agricultores brilhavam na Exposição de Paris, apesar de não contarem com mínima colaboração do governo imperial.
Era essa a aparência de pujança que presidia a cidade naquele fim século, quando recrudesceu com caráter epidêmico a febre amarela que poucos anos antes já se manifestara no município (1886) de forma endêmica. Diante da virulência do surto, a população se apavora. Doença sem cura. A experiência anterior lhe dá a dimensão da tragédia. Uma debandada. Fogem os fazendeiros abandonando os casarões, correm os comerciantes esquecendo os seus balcões, silencia a justiça sem magistrados para julgar e se esquivam os meirinhos sem mandados para cumprir.
Somem os médicos que não sabiam medicar e desaparecem os farmacêuticos que não tinham receitas para aviar. O caos. Uma paisagem desolada que quase se transforma na cidade vazia de que fala Papini em Gog: – repleta de ruínas e de fantasmas […] Tão intensa foi a epidemia que a área urbana, que antes estava com 10.000 habitantes, ficou reduzida a 3.000 moradores, assim mesmo composta de pobres remanescentes que, como náufragos sem rumo, não tinham para onde fugir. E pior teria sido, se a Providência não houvesse posto na administração da saúde pública de São Paulo o sanitarista de percepção genial que – quando a origem da doença era ainda totalmente desconhecida – bem antes de Finlay concluir, em Havana, que a causa era o Stegomyia Fasciata (Aedes Aegypti) – teve a intuição quase divina de que o transmissor era o mosquito. Daí, dessa percepção, se deu o passo decisivo.
À semelhança do que se faz, ainda hoje, contra a dengue, combateu-se o invasor. Com o saneamento de esgotos, águas paradas e mata-mosquitos todos os dias de casa em casa, a urbe foi retornando aos poucos à vida normal. Campinas ressuscitou. Foi por isso que a cidade chorou, o médico, o milagreiro que, naquela data de 19 de dezembro de 1925 deixava a terra, fora um facho de vida. Lutador de mil combates, combatente de mil lutas, pelejou também contra a peste bubônica em São Paulo e fundou o Instituto Butantã, preestabelecendo para a instituição os métodos que a tornaram uma formidável estrutura especializada no mundo.
Ainda em 1908, cuidando de eliminar a tuberculose e a lepra que grassavam no país, foi designado para uma viagem oficial de estudos à Europa, ocasião em que recusou convite do governo francês para dirigir o combate à febre amarela na Martinica, porque, dizia ele então, sua missão haveria de ser aqui, no trabalho assistencial da nação atacada de tantas doenças.
Tinha razão Mariquinha. Aquele ser emotivo voltado para o lado sensível da vida não podia mesmo ficar de pijama em casa. O seu lar não era uma cabana, mas a humanidade.