Samba paulista: experiências, histórias e memórias da estratégica trajetória dos negros

Samba paulista: experiences, stories and memories of the strategic trajectory of blacks.

Por Olga Rodrigues de Moraes von Simson – socióloga, professora. Titular da Cadeira 40 do IHGG Campinas.

Em investigações anteriores sobre o Carnaval Popular Paulistano (Simson, 2007) observei que a maioria dos líderes das agremiações carnavalescas (Cordões e Escolas de Samba), participantes dos desfiles de Momo na capital do estado, era originária de cidades tradicionais do “interland” paulista, como Piracicaba, Campinas, Rio Claro, Tietê, Capivari ou Tatuí, locais onde, crianças e adolescentes haviam dançado as várias formas do samba rural: de roda, de lenço, de batuque ou de umbigada.Samba de Umbigada

Samba de Umbigada dançado em Rio Claro. Imagem rara registrada por imigrante italiano que se infiltrou no grupo, a mando da polícia, que queria acabar com essa prática cultural negra na cidade. Foram eles que fotografaram e essas imagens foram obtidas a partir dos registros policiais.

Estas eram festividades do povo negro recém-liberto da escravidão e estavam estreitamente relacionadas as suas origens africanas. Em algumas dessas cidades, a Igreja Católica e os grandes fazendeiros proibiam tais danças, encaradas como libidinosas. Eles entendiam que havia uma origem religiosa nessas danças e que, na África, as tribos dançavam o “semba” – palavra presente nas línguas de várias tribos da África Ocidental – para prestar homenagem à Deusa da Fertilidade, a divindade que lhes garantia boas colheitas e muitos filhos para ajudar nas guerras e na agricultura.

Até hoje em Campinas há um ponto de cultura criado pelo grupo de dança-afro paulista Urucungos, Puitas e Quinjenges, liderado por Alceu Estevan, no qual o samba é dançado segundo a tradição de se chamar o parceiro para o centro da roda, através da umbigada – convida-se um dos participantes da grande roda para o centro da mesma, para fazer uma dança cujos movimentos promovem o encontro do ventre dos dois dançarinos, se assemelhando aos movimentos do ato sexual. Por isso o nome: samba de umbigada.

Devido à forte repressão exercida pela Igreja e pelos fazendeiros, desde o século XIX, o povo negro de Campinas resolveu homenagear o bumbo, instrumento que marca o ritmo do samba: os homens fazendo uma reverência e as mulheres jogando a beirada das suas saias rodadas sobre o instrumento, numa leve e delicada homenagem.

Mas, havia também alguns poucos fazendeiros que eram mais flexíveis, compreendiam a necessidade de se divertir dos seus cativos e encaravam tais festividades como uma maneira de acalmar os sentimentos de rebeldia. Este foi o caso do Barão Geraldo de Rezende, proprietário da fazenda Santa Genebra, que gostava de assistir as danças do alto da janela de seu sobrado.

Nesses dias os escravos homenageavam seus santos negros com rezas, mas também com muitas danças, pedindo a São Benedito, Santa Efigênia, Santa Bárbara ou Nossa Senhora da Conceição que os amparassem e os protegessem na vida dura que levavam.

Depois da abolição da escravatura, em 1888, muitos escravos migraram para as cidades maiores em busca de subsistência. Nesse processo, eles trouxeram não só as suas poucas tralhas, mas também o conhecimento dessas tradições profano-religiosas. Na capital da província, continuando a celebrar e festejar os seus santos, eles acabaram criando territórios negros, ao ocupar regiões que eram próximas ao centro, mas por serem inundáveis nas épocas de chuva ou escarpadas, não eram tão valorizadas no mercado imobiliário. Foi assim que a Barra Funda, próxima aos meandros do Rio Tietê ou o Bexiga, com ladeiras íngremes, ou ainda a Baixada do Glicério, que nos meses de verão recebia as águas das enchentes do Rio Tamanduateí, se tornaram os territórios de cidadãos negros da cidade, principalmente.

Foram nesses territórios que as tias negras realizavam as festas nas datas importantes do calendário afro-religioso, como a Festa de Santa Cruz (no início de maio) a Festa de Santo Antonio (na segunda semana de junho), a Festa do Bom Jesus (no início de agosto). Nelas se desenvolveram primeiro os cordões e, depois, as escolas de samba. Ali nasceram as primeiras reuniões preparatórias para a formação de procissões profanas, de caráter carnavalesco, para serem apresentadas durante o tríduo de Momo, na forma de desfiles processionais. Tais desfiles percorriam todo o centro velho da cidade e visitavam os salões da raça, locais onde jovens negros com maior poder aquisitivo e integrados ao mercado de trabalho, realizavam bailes animados nos finais de semana.

Seu Dionísio Barbosa

A os 85 anos, Dionísio Barbosa, o patriarca do samba paulista. Nascido no interior do Estado, migrou para a Capital e se fixou na Barra Funda, tendo fundado o Cordão Camisa Verde em 1914, depois de ir trabalhar no Rio de Janeiro e tomar contato com os cordões que do carnaval carioca.

Para reconstituir a migração das tradições sambísticas, das suas origens rurais para espaços urbanos mais desenvolvidos, decidimos localizar e entrevistar os líderes mais idosos e os participantes mais ativos dessas danças tradicionais, que viviam em várias das cidades que ainda apresentam grandes contingentes de população afro-paulista: Campinas, Piracicaba, Capivari, Vinhedo e Itu.

Todos os anos, desde as últimas décadas do século XIX, os sambadores costumavam se reunir em Pirapora do Bom Jesus, uma pequena cidade interiorana situada às margens do Tietê, próxima a Santana do Parnaíba, uma espécie de Meca religiosa paulista. Eles chegavam até lá de várias maneiras: a cavalo, de carroça, de trem, de caminhão ou mesmo a pé. Assim, anualmente, no início de agosto, o povo negro buscava o Santuário do Bom Jesus, em Pirapora, para prestar homenagem ao Nosso Senhor, seja assistindo missas, participando das procissões ou rezando novenas e trezenas durante o dia, mas também dançando animados sambas à noite, nos barracões onde se abrigavam para permanecer durante toda uma semana.

Pirapora do Bom Jesus (SP)

Pirapora do Bom Jesus, a Meca do Samba Rural Paulista, antes que a poluição tomasse conta do Rio Tietê.

Nessas ocasiões, os numerosos membros dos grupos de samba rural, de catira ou de cateretê, vindos de várias localidades do interior de São Paulo, de cidades do sul de Minas Gerais ou de pequenas vilas do Norte do Paraná ou mesmo do sul de Mato Grosso, trocavam experiências musicais ou coreográficas e, podemos dizer, que os afro-paulistanos, já afastados do meio rural, porque habitando na Capital, aproveitavam para recarregar suas baterias de tradição, pela convivência com seus irmãos e primos que ainda viviam em situações de ruralidade.

Nos anos de 1930 a 1950, tanto na capital do estado como em outras cidades menores, o samba paulista perdeu visibilidade, porque passou a ser perseguido pela polícia que o encarava como entretenimento de negros, que devia ser empurrado para as periferias dessas cidades. O samba só tinha oportunidade de ser cantado e dançado em espaços públicos, durante o Carnaval, ou na parte profana das festividades em honra aos santos negros.

Com uma forte influência da indústria cultural que se desenvolveu nesse período, com o rádio e reforçado com a introdução da televisão, o samba afro-paulista que a princípio estava pouco valorizado foi aos poucos conquistando espaço no cenário cultural. No entanto, por obra dessa indústria cultural, os espaços tradicionais de samba de São Paulo, que funcionavam como mantenedores da tradição afro-paulista, passaram a consumir o samba baiano ou carioca, deixando as criações do samba paulista relegadas a um segundo nível, pouco reconhecidas e valorizadas.

Mas as agremiações sambísticas não ficaram em posição subserviente e desenvolveram estratégias para manter sua memória e tradição bem vivas. Uma delas foi reconhecer e homenagear os velhos líderes fundadores das escolas mais tradicionais do carnaval paulista, que foram encorajados a oferecer, durante o ano, oficinas de samba para as gerações mais jovens. Dessa forma, suas estórias passaram a fazer parte da vida da agremiação, sendo recontadas pelas crianças e adolescentes em textos, canções, criações carnavalescas e até fazendo parte das atividades de educação não-formal promovidas nas sedes das escolas e dos cordões. As lideranças mais importantes, masculinas e femininas, passaram a integrar uma ala de peso fundamental para o sucesso do desfile carnavalesco anual: a Ala da Tradição ou dos Veteranos, que se tornou um dos requisitos obrigatórios para o sucesso dos desfiles oficiais.

Essas estratégias, especialmente a nova forma de ensinar das oficinas de carnaval (de percussão ou de samba no pé), revelam que o ato de ensinar e aprender poder ser vivenciado, de maneira envolvente e sedutora, trazendo elementos fundamentais para a construção identitária do cidadão e, nessa trajetória, levando-o a viver um forte processo de empoderamento.

As oficinas de samba também deveriam formar novos membros para a agremiação, conscientizando-os da origem sociocultural do seu povo, capacitando-os para os desfiles carnavalescos não apenas para se divertirem, mas para difundirem os princípios da causa integradora negra. Além disso, deveriam ser capazes de bem representar o samba de São Paulo não somente no período carnavalesco, mas também em apresentações culturais, realizadas ao longo de todo ano, na cidade ou nos locais onde as agremiações fossem convidadas a estar presentes.

Seu Chicão.

Nascido no Distrito de Sousas, filho de uma sambadeira, seu Chicão relatou aos 92 anos de idade, a importância do samba de roda praticado nos redutos negros campineiros.

Observa-se, nas últimas décadas, o retorno do samba, seja carioca, baiano ou paulista, mas atividades de lazer de grupos jovens, cada vez mais numerosos, devido a algumas razões interessantes. Primeiro, um maior nível educacional dos jovens de origem afro-brasileira que, em grandes números tem chegado à universidade e lá, entrando em contato com associações militantes que divulgam a causa étnica, os faz aceitar com maior compreensão a cultura familiar, vivendo-a mais intensamente. Segundo, as organizações comunitárias que têm surgido nas zonas periféricas das cidades maiores e que promovem encontros musicais, geralmente nos finais de semana, denominados de Rodas de Samba. Neles a reunião acontece para cantar os sambas tradicionais, mas também as composições mais recentes de seus próprios membros; dessa maneira, os jovens têm encontrado espaços para trocar seus conhecimentos sobre a realidade afro-paulista e brasileira; o Samba da Vela, em Santo Amaro, o Grupo de Samba de São Mateus, em São Paulo e o Grupo Cupinzeiro, atuante em Campinas, são exemplos dessa prática. Terceiro, o apoio governamental ou empresarial para instituições culturais que apresentam tal performance, através de concessão de verbas para produções culturais como shows, gravações, o que melhora a divulgação do trabalho e atrai a participação entusiástica de estudantes universitários de classe média que, embora não possuindo uma clara origem afro-paulista, encaram o samba como uma manifestação cultural nacional, cujo consumo não está restrito aos seus colegas afrodescendentes.

Mercado Municipal de Campinas (SP).

Mercado de Campinas, no início do século XX. Era o local de reunião dos sambadores da cidade que, depois do trabalho, cantavam e dançavam o samba na praça fronteira ao mercado.

Durante as pesquisas realizadas em Piracicaba (ver Simson e Nogueira, 2008) pude observar, também, que crianças e adolescentes de nítida origem afro-paulista, que haviam aprendido a dançar o samba de roda ou o samba de umbigada com seus avós ou tios-avós, passaram a ensinar seus colegas durante as oficinas de Danças Tradicionais Brasileiras realizadas nas escolas, sentindo-se assim orgulhosos de transmitirem com suas vozes, seus movimentos corporais e suas vestes, a saga cultural dos seus ancestrais.
Assim, pode-se dizer que há um movimento cultural, perpassando vários níveis da sociedade paulista, que permite que o samba vá se tornando parte integrante da memória coletiva da nossa sociedade, deixando de ser apenas a expressão de uma memória subterrânea ou marginal, restrita a grupos discriminados. Mas, se ele vai se tornando aceito e socialmente reconhecido, sendo mesmo ensinado nas escolas públicas para crianças e adolescentes, vai perdendo nesse processo a sua antiga capacidade de permitir ao sambista afirmar-se etnicamente, através da sua prática e de funcionar como uma importante estratégia para a construção da diferenciação sociocultural.

Bibliografia
ALVISI, Lilian de Cássia. Memória como estratégia de resistência política. 2007, Doutorado, FE/Unicamp.
NOGUEIRA, Claudete de Souza. Batuque e resistência cultural de famílias negras paulistas. 2008, Doutorado, FE/Unicamp.
SIMSON, Olga R. de Moraes von. Os Desafios Contemporâneos da História Oral. Campinas, CMU/Unicamp, 1997.
SIMSON, Olga R. de Moraes von; PARK, Margareth; FERNANDES, Renata S. (org). Educação Não-Formal: cenários da criação. Ed. da Unicamp, 2001.
SIMSON, Olga R. de Moraes von. “Memória, Cultura e Poder na Sociedade do Esquecimento”. Revista Acadêmica, v. 1, n.6, pp.14-18, 2003.
SIMSON, Olga R. de Moraes von. Carnaval em Branco e Negro: Carnaval Popular Paulistano (1914 – 1988). Campinas, Eds. da UNICAMP, USP, Imprensa Oficial, 2005.
SIMSON, Olga R. de Moraes von. “Imagem e Memória”. In: SAMAIN, Etienne (org). O fotográfico. 2.ed. São Paulo, 2005. pp.18-24.
SIMSON, Olga R. de Moraes von; GIGLIO, Zula Garcia. “A arte de recriar o passado: história oral e velhice bem-sucedida”. In NERI, Anita L. (org). Desenvolvimento e Envelhecimento: Perspectivas Biológicas, Psicológicas e Sociológicas. 2.ed, Campinas, 2006. pp.141-160.
SIMSON, Olga R. de Moraes von. “O Samba Paulista e suas estórias”. Resgate Revista de Cultura, CMU/ Unicamp.

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