Festas juninas: dos bolos de São João aos pés-de-moleque

June Brazilian festivals: from St. John cakes to the “pés-de-moleque” candies.

Por Eliane Morelli Abrahão – historiadora, professora colaboradora na Unicamp. Titular da Cadeira 26 do IHGG Campinas.

O mês de junho é marcado por comidas típicas, fogueiras, bandeirinhas coloridas, quadrilha e fogos de artifícios em diversas regiões e cidades do país. Hum… cheirinhos de quentão, canjica, bolo de fubá e pinhão cozido em água nos trazem, lembranças do período Joanino, ou como chamamos no Brasil, Junino.

O intercâmbio e a perpetuação de instruções culinárias ao longo do tempo estão na raiz do que poderíamos chamar de sabores típicos, por constituírem receitas preparadas e consumidas em determinadas ocasiões festivas. Seria uma espécie de calendarização da alimentação, segundo a qual a ingestão de determinadas iguarias, ano após ano, em determinadas datas, sugere o papel do alimento enquanto referência cultural, signo da memória coletiva.

Mas estamos em junho e neste mês todos desejam ir a uma quermesse e saborear as delícias típicas dessas festas. Então fica a pergunta: Como surgiu essa tradição?

As comemorações conhecidas atualmente como Festas Juninas, tiveram sua origem antes da era cristã. Os povos da Antiguidade acreditavam que as celebrações à deusa Juno – Hera na mitologia grega, considerada como a protetora do casamento, do parto e da mulher – proporcionariam fartas colheitas. Diversos povos – bretões, bascos, sardenhos, persas, egípcios – mantiverem esses rituais. A partir do século XII, a Igreja Católica – que não via com bons olhos as festas populares da Europa naquele período – iniciou o processo de incorporação desses festejos, vinculando-os ao seu calendário litúrgico. No Brasil, os colonizadores portugueses e os padres jesuítas se depararam com as tradições indígenas de preparação do solo para o plantio e os festejos propiciatórios a uma safra abundante. O intercâmbio cultural incorporou e transformou essa “festa pagã” em cristã, fazendo-a em torno da figura de São João Batista.

Trata-se de um festejo enraizado na cultura brasileira, que tem o alimento como um importante elemento de identidade. Comidas típicas evidenciam a estreita relação entre o tempo da natureza e o tempo da cultura. Nas comemorações a São João Batista, considerado o protetor das colheitas, os fogos de artifício, o mastro com estampas de santos (Antonio de Pádua e Pedro) e a culinária considerada do ciclo – bolo de fubá, curau, pamonha, canjica, pinhão cozido na água e amendoim – ambientam tipicamente o festejo. A literatura inspirou-se frequentemente nesse tema. Em um texto de José de Alencar, a dona de um modesto sítio nos arredores de Santa Barbara, São Paulo “[…] estava mui atarefada em amassar ovos e fubá mimoso para fazer as broas e os bolos de milho”. […] estava nhá Tudinha embebida em fazer um passarinho de biscoito”. Em outra passagem sobre o jantar oferecido em sítio de pessoas abastadas nos arredores de São Luís, Maranhão, Aluísio de Azevedo registrou que entre capados, carneiro e peru, estavam: “[…] uma compoteira de doce de calda […] a boca cheia de arroz-doce […] uma compoteira de doces de pacovas.”

Os festejos de São João mereceram destaque por parte da preceptora alemã Ina von Binzer, residente na fazenda São Francisco, no Estado do Rio de Janeiro, de propriedade de um cafeicultor a quem ela chama simplesmente Dr. Rameiro. Em seus relatos epistolares a Grete, amiga que deixara na Alemanha, ela diz que se trata de um santo muito querido dos brasileiros, acrescentando ainda que a sua festa representava, para os escravos, o final da colheita do café. Atenta aos preparativos que antecediam a festa, von Binzer descreveu as atividades desenvolvidas por Dona Gabriela, a senhora Rameiro, a qual preparara o seguinte cardápio para o dia em questão:

Sobre a mesa, grandes assados já cortados, montes de arroz (naturalmente cor de tijolos, por causa dos tomates) travessas gigantes de feijão preto acompanhadas pelo seu inseparável complemento, o bolo de fubá, o “angu”; como sobremesa, havia compota de batata doce, milho novo cozido em leite (canjica) seguida pelo melado, goiabada, que é um doce maravilhoso preparado com a fruta da goiabeira e até vinho a “discrétion”. (von Binzer, pp.30-33).

Os bolos de São João e Santo Antonio, o doce de abóbora vidrado, os pés de moleque, a paçoca e o curau provavelmente complementavam o rol de guloseimas consumidas nesses festejos em São Paulo. Podemos acrescentar ainda a esse repertório a descoberta e a aplicação de novos ingredientes, entre os quais destacamos o amendoim, presente em muitos dos pratos consumidos nessas ocasiões.

Viajantes estrangeiros descreveram, desde o século XVI, a fauna e flora brasileiras e os hábitos alimentares dos nativos. Em muitos momentos o contato desses desbravadores com as singularidades alimentares dos povos autóctones causou-lhes estranheza, repulsa, mas também satisfação. No caso do amendoim, uma das primeiras referências a essa leguminosa, que cairia no gosto dos brasileiros, foi feita pelo português estabelecido na Bahia, Gabriel Soares de Sousa, no Tratado Descritivo do Brasil (1587). O cronista foi prolífero em suas palavras sobre o amendoim. Começou por afirmar que “[…] Dos amendois (sic) temos que dar conta particular, porque é cousa que não se sabe haver senão no Brasil.” Continuou dizendo que o plantio era feito exclusivamente pelas índias e mestiças, as quais também cuidavam da colheita das bagas. Esclareceu que essas poderiam ser ingeridas cruas, assadas ou cozidas com as cascas, como as castanhas. Saborosas, na opinião do cronista, os amendoins ficavam ainda melhores se torrados fora da casca.

Foram as mulheres portuguesas que introduziram as versões doces das receitas de amendoim, elaborando-as assim como faziam com as amêndoas. Escreveu Soares de Sousa que essas mulheres preparavam os amendoins cortados “[…] cobertos com açúcar de mistura com confeitos”. Ou ainda “[…] curam em peças delgadas … de que fazem pinhoadas” (Souza, pp.177-178). O viajante alemão Robert Avé-Lallement (1858) comparou o sabor do mandowi – assim denominado na nomenclatura tupi, significa enterrado no chão – ao da avelã e destacou que quando elaborado por confeiteiros era muito apreciado pela criançada (p.136).

Interessante pensar como se deu a perpetuação das receitas de arroz doce e dos derivados do milho como, por exemplo, canjica, pamonha e curau. Deteremo-nos na canjica de milho – considerada por viajantes estrangeiros prato de consumo diário dos paulistas desde início do século XIX. O franco-campineiro Hercule Florence deixa um interessante depoimento sobre esta iguaria. Quando em viagem pelos arredores de Jundiaí, ele mencionou que:

[…] pela primeira vez comi milho descascado e cozido sem sal, sem preparo algum. É a canjica, de que os paulistas fazem sempre uso no fim da comida. A princípio achei esse manjar singular, mas com o correr dos tempos habituei-me tanto a ele como se fora natural do país. Com açúcar e leite é coisa deliciosa. (Florence, p.12).

A canjica – ou mungunzá como a denominam os nordestinos – é presença certa nos festejos juninos até hoje. Enfim, perpetuação e incorporações que marcam nossa cultura.

Para aguçar os paladares dos leitores, seguem algumas receitas extraídas de cadernos de cozinha do final do século XIX e início do XX.

alimentos
Arroz doce (Anna Henriqueta)
1 xícara pequena de arroz, lavando-se muito bem, e cozinha-se com 6 xícaras pequenas d’água fria até secar, mas não deixar pregar no fundo da caçarola.
Depois de cosido deita-se 9 xícaras pequenas de leite, 2 ½  xicaras pequenas de açúcar e vae-se mexendo em fogo regular, até engrossar, depois de grosso, desce-se a caçarola do fogo e engrossa-se com 2 gemas d’ovos, torna-se a levar a caçarola no fogo para cozinhar os ovos sempre mexendo, e está pronto.

Bolo de Fubá mimoso (Barbara)
1 libra de fubá mimoso, faz um angu bem mole, com uma garrafa de leite e sal; depois de frio deita-se 12 ovos de um em um para não encaroçar o angu; 1 libra de açúcar refinado, ½ libra de queijo ralado, mistura-se tudo muito bem e deita-se em forma untada com manteiga. Assa-se em forno quente.
 
Rapaduras de leite com amendoim (Anna Henriqueta)
8 xícaras de leite
4 xícaras de açúcar simples
4 xícaras de açúcar queimado
1 colherinha das de café de bicarbonato
200 grs. de amendoim
Queima-se o açúcar até ficar bem vermelho, e mistura-se ao leite que já contém o outro açúcar, juntando-se ao mesmo tempo o bicarbonato e vae ao fogo para engrossar, levantando sempre com a espumadeira até formar ponto de bala, deitando um pouco d’ele n’um prato com agua fria, estando nesse ponto, deita-se o amendoim torrado e descascado e leva-se para um lugar fresco, batendo-se sempre até o ponto que despejando no mármore levemente untado com manteiga, ele seque e se possa cortar em quadradinhos.

Pé de moleque com rapadura (Barbara)
Toma-se 2 rapaduras que se derretem em 4 garrafas d’agua, lança-lhes em seguida uma clara d’ovos batida com agua, deixa-se ferver mais um pouco, côa-se em um pano e leva-se outra vez ao fogo, até tomar o ponto de açúcar. Junta-se então um prato de amendoins torrados e um pedacinho de gengibre socado. Tira-se do fogo e bate-se no taxo com uma colher de pau; quando estiver em ponto de açúcar despeja-se a mistura em taboa forrada com farinha coada, e depois de frio corta-se quadrados.

Bolo de S. João (Anna Henriqueta)
12 gemas 1 libra de açúcar 1 libra de manteiga leite de coco 2 colheres de mandioca ralada, assa-se em forma.
 
Doce de Abóbora (Custódia)
2 libras (1 Kg) de açúcar, 1 libra (500 g) de abóbora verde. Passando em peneira feita a calda deita-se a massa mexendo-se até ficar grosso, desce-se e deita-se 6 gemas. Torna a ir ao fogo até que apareça o fundo do tacho. Põem-se em xícara com canela por cima.

Referências:

Cadernos de receitas:
Arquivos Históricos-CMU. Coleção Barbara do Amaral Camargo Penteado.
Arquivos Históricos-CMU. Coleção Família Quirino dos Santos e Simões.
Arquivos Históricos-CMU. Fundo Theodoro Sousa Campos Junior.

ALENCAR, José de. Til (1846-1872). vol. 1, São Paulo, Edições Melhoramentos, s.d. p.126.  Disponível em: Arquivo Ernani Silva Bruno <http://www.mcb.sp.gov.br&gt;. Acesso em: 22/03/2010.
AZEVEDO, Aluísio. O Mulato (1881). São Paulo, Martins Editora/ Instituto Nacional do Livro/ MEC, 1975. pp. 153, 156. Disponível em: Arquivo Ernani Silva Bruno <http://www.mcb.sp.gov.br&gt;. Acesso em: 22/03/2010.
D’ALINCOURT, Luiz. Memória sobre a viagem do Porto de Santos à Cidade de Cuiabá. Prefácio de Mário Guimarães Ferri. São Paulo: Livraria Itatiaia Editora Ltda., 1975. (Coleção Reconquista do Brasil, v.25).
FLORENCE, Hercule. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas (1825-1829). São Paulo: EDUSP, Cultrix, 1977.
LALLEMANT, Robert. Viagem pelo Sul do Brasil no Ano de 1858. vol. I, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro/ Ministério de Educação e Cultura, 1953. p.136. Disponível em: Arquivo Ernani Silva Bruno <http://www.mcb.sp.gov.br&gt;. Acesso em: 15/08/2013.
LIMA, Constança Oliva de. Doceira Brasileira ou Nova Guia Manual para se fazerem todas as qualidades de doces. 2.ed. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1856.
HUE, Sheila Moura. Delícias do descobrimento.A gastronomia brasileira no século XVI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
von BINZER, Ina. Os meus romanos: alegrias e tristezas de uma educadora no Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
SOUZA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil. Apresentação de Francisco Adolfo de Varnhagen. Instituto Histórico do Brasil, 1851. (1587). pp.177-178. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/textome003015.pdf&gt; Acesso em: 15/01/2014.

5 comentários

  1. Muitas lembranças ao ler este artigo. Em Campinas as festas nos clubes foram as melhores de que participei, nem tanto pelas iguarias, mais pelas brincadeiras e diversão. As festas nas cidades do interior foram aquelas onde aprendi a gostar de pamonha, curau, paçoca, doce de abóbora, arroz doce e tantas outras delícias. A pergunta que eu e minha mulher faxemos todos os anos: onde achar uma quermesse que nos traga de volta um pouco dessas lembranças deliciosas?

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  2. Delicioso texto que nos reporta a um tempo saudoso em que as festas juninas, mesmo nas grandes cidades, tinham lugar de destaque, aguardadas com entusiasmo por adultos e crianças. O clima, peculiar, a partir das mesas cobertas com toalhas rústicas, prontas para receberem os quitutes tradicionais de inspiração roceira, enquanto a serenidade das noites pintalgadas de estrelas e balões era rasgada e sacudida pelos rojões que subiam, longe de incomodar, saudados com palmas festivas e uma alegria ingênua e tão saudável… definitivamente impossível de ser bisada em nossos tumultuados dias!

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